sexta-feira, 14 de março de 2014

O Homem que Viajou Sozinho. Leituras. Virgil Gheorghiu. «Quando Grigore avistou o comboio na estação deixou que os cavalos descessem mais depressa. Sabia que o único comboio que chegava de manhã não partia senão ao, meio-dia, e que tinham ainda tempo»

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«(…) Mas era o feitio de Traian, deixar-se ficar quieto na varanda, com os livros. Até à idade de vinte anos, até agora, fora essa a sua maior felicidade. O seu sonho secreto era vir a ser um padre de aldeia, como era o pai e como tinham sido todos os seus antepassados, naquela região da Moldávia do Norte, junto aos Cárpatos. Mas a vida tornara-se difícil. Naquela região toda a terra era estéril. Os homens eram pobres, o clima duro. Traian tivera de escolher outra carreira. Decidira então matricular-se na Faculdade, em Bucareste, para ser professor. Tinha de ganhar a vida enquanto estudasse. O pai era muito pobre para o ajudar; tinha que pagar os estudos aos quatro filhos mais novos com o pouco que tinha. No entanto, Traian partiu para a Universidade cheio de grandes esperanças. Ainda no liceu, publicara dois volumes de poesia: A Vida Quotidiana do Poeta e Esboços. Colaborara em todas as revistas literárias da capital. Graças a ser já conhecido como um dos escritores novos, esperava arranjar um lugar de redactor num jornal de Bucareste e ganhar" dinheiro suficiente para viver durante o curso e pagar as matrículas. Tinha já mesmo algumas promessas. Deixava Isvor cheio de confiança. De repente lembrou-se das lágrimas da mãe. Voltou-se para Grigore, que guiava os -cavalos, e quis-lhe perguntar: …porque é que a mãe chorava como se eu fosse para o fim do mundo? Mas Grigore, que estava ao serviço do padre há mais de vinte anos, mergulhara nos seus pensamentos. Fitava, absorto, a estrada que se estendia diante deles. Traian não quis perturbar-lhe a meditação. Não lhe perguntou nada. Fitou também a estrada, como Grigore. A carruagem avançava ao trote dos cavalos na estrada que atravessava a aldeia. A estrada e os pátios estravam desertos. Nem vivalma. Como a terra era pobre, os habitantes de Isvor iam ganhar o dia a centenas de quilómetros dali. Agora tinham ido vindimar para a Moldávia do Sul com as mulheres, os filhos e as carroças. Ninguém ficava em Isvor, a não ser os velhos e os doentes. O carro do padre avançava na estrada deserta. Diante deles, à direita, ficava a última casa de Isvor. Era a casa do professor. Igualzinha à do padre: paredes brancas, telhado de varedo, varanda de madeira, flores à janela e, diante da porta, um poço com uma roda.
Diante do poço estava a filha única do professor, com uma saia azul como as flores que se chamam não-me-deixes. Traian despedira-se na véspera; Maria, no entanto, queria tornar a vê-lo ainda antes da partida. Por isso veio ao encontro dele, para junto do poço, quando ouviu ao longe o ruído do carro. Maria andava no liceu de Kichinev, que Traian frequentara durante oito anos. Também ela, dali a um ano, sairia do liceu. Às vezes, ao domingo, encontravam-se em Kichinev. Traian dedicara-lhe alguns versos, e Maria sentira-se toda orgulhosa por ser a musa de um poeta. Hei-de te mandar a direcção do Lar para onde vou ficar em Buoareste, logo que lá chegue, disse Traian no momento em que o carro chegava à porta do professor. Os cavalos iam agora a passo. Traian disse: Saúda por mim Kichinev e toda a Bessarábia, Maria! Parto amanhã de manhã às sete horas, disse ela. A rapariga estava encostada ao poço. A saia, azul como as flores das miosótis, desfraldava-se ao vento. Adeus, até às férias do Natal!, disse Traian acenando. Os cavalos meteram de novo a trote. Traian olhou para trás. Alguns minutos depois, a estrada virava para a direita e grandes árvores esconderam a casa do professor, o poço de roda de madeira e a rapariga de saia azul. O Natal era dali a quatro meses. Traian esperava voltar coberto de glória e pensava no que iria acontecer quando voltasse. Enfrentava o futuro com confiança. Alguns instantes depois, a estrada começava a descer. A estação ficava a quatro quilómetros, no vale. Traian avistava agora a minúscula estação, com as paredes brancas e o telhado de telhas vermelhas. Era uma estação-términus, a que só chegava um comboio por dia. Esse comboio, composto de três pequenas carruagens e de uma locomotiva, estava agora diante do edifício de paredes brancas e de telhado vermelho. Quando Grigore avistou o comboio na estação deixou que os cavalos descessem mais depressa. Sabia que o único comboio que chegava de manhã não partia senão ao, meio-dia, e que tinham ainda tempo. Mas, instintivamente, deixou ir os cavalos mais depressa. Quando o menino voltar, no Natal, vai nevar, disse Grigore. Hei-de vir busca-lo de trenó». In C. Virgil Gheorghiu, O Homem que Viajou Sòzinho, tradução de Vitorino Nemésio, 4ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa.

Cortesia da LBertrand/JDACT