Vidas são Vidas
«(…) Um grande Senhor, digamos, que até às vezes se pode insultar
(quando parece divertir-se a flagelar-nos), mas a quem, outras vezes, é doce
abandonarmo-nos totalmente. Assim, com os simples que têm fé, se passam
naturalissimamente coisas muito complexas. Até ao dirigirem-se ofensivamente ao
seu Senhor, quando o seu Senhor os desprotege, a sua fé se manifesta. Para ele,
Pedro, (e nisso estava a diferença) não
passava Deus de qualquer longínqua Força indeterminada, qualquer suprema
Vontade, ou imensa Inteligência, que parecia chegar a entremostrar-se-nos aqui,
além, como em tantas coisas belas da Criação, mas enfim sempre nos ficava
incógnita, e em si se perdia nas abstracções da transcendentalidade... Estes
mesmos termos, claro que não chegava Pedro a pensá-los senão muito vagos: como
reminiscências de certa primeira educação intelectual recebida no colégio, ou
nas suas posteriores experiências culturais de autodidacta, e, em suma, nos
anos em que ainda lia livros diversos dos policiais vulgares.
Estes se haviam tornado toda a sua leitura nos últimos tempos de vadio
ou cauteleiro: uma espécie de ópio barato, para fazer esquecer, como o
cinema de aventuras. E pouco a pouco, nesses últimos tempos, se fora
esquecendo de Deus; ou, quando de Ele se lembrava, não era senão para o acusar
dos seus infortúnios. Aparentemente, assim reassumia a posição dos crentes
simples. Mas nos simples, invectivarem o seu Deus testemunha a sua fé. Nele já
não era aquilo senão um desabafo quase supérfluo, uma vontade de ter Alguém (em
quem, aliás, não podia dizer se cria) para responsabilizar pelo seu destino. Que
felicidade, estar dentro do tempo sem se lembrar dele! Deixar-se viver, mesmo
doente, sem a preocupação do tempo ou do quer que fosse! O há-de ser o que Deus quiser pode ser muita coisa; até uma
espécie de interjeição vazia. Na boca ou na mente do actual Pedro, que estava
sendo abalado, propendia a exprimir aquela confiança que tantas vezes
exprime nos crentes simples, e da qual nunca tanto ele se aproximara. Se, de
longe em longe, vinha ao espírito de Pedro que a sua doença era contagiosa, não
deixava de admoestar Angelina em tal sentido. Até mais de uma vez recomendara a
Francisca, supérflua recomendação, à escrupulosíssima Francisca, para ter a
louça dele separada. Assim descarregada a consciência dum temor pouco
opressivo, no fundo fundo não acreditava Pedro que pudesse contagiar os seus benfeitores.
Tão-pouco, e não obstante o deprimente espectáculo das hemoptises, a
persistência da febre, a ausência ou deficiência de forças, a consumição da
tosse, chegara alguma vez a crer que o seu mal fosse irremediável. Sempre
acreditara nas resistências da sua compleição. E se chegara a desesperar, a
desleixar-se de todo, no seu cubículo da Mouraria, fora simplesmente porque
sabia não poder seguir o tratamento requerido pela sua doença. Desde que esse
tratamento lhe era facultado, desde que tinha à mão tudo quanto poderia sonhar,
logo tivera plena certeza de restabelecimento. Por acaso, a Natureza lhe estava
dando razão.
Agora lhe posso dizer, declarou-lhe uma tarde o Dr. Laje, depois das
suas auscultações, que a sua confiança tem sido magnífica! Mas olhe... nem
sempre me senti eu assim confiante. Isso de dar
um pontapé à morte, como diz a nossa velhota, nem sempre é fácil mesmo
a um rapaz bem constituído... e resoluto... Não sei se o meu amigo chegou a
saber como esteve! Pois olhe que esteve quase... esteve perto...» In
José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.
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