Os Bastardos de Borgonha
«(…) Certo é, que, tendo saído de Portugal, Fernando Afonso foi
mestre da Ordem do Hospital na
Hispânia, pelo menos a partir de 1198,
e depois eleito grão-mestre em 1202,
eventualmente em virtude da influência que sua meia-irmã, a condessa Matilde da
Flandres, exercia junto do papa Inocêncio III. Tomou parte na 4.ª Cruzada (1202-1204), que, como se sabe,
desviou o seu objectivo para conquistar Constantinopla, em vez de se dirigir à
Terra Santa. Em 1204 estava
em Acre e, no ano seguinte, recebeu uma doação de Balduíno, imperador de
Constantinopla. Em 1206 renunciou ao
seu cargo e regressou a Portugal, onde, diz a Chronica magistrorum defunctorurn,
foi envenenado pela sua gente.
O Livro
Velho de Linhagens, esse, assegura que Fernando Afonso, ou só Afonso,
foi morto em Évora pelos cavaleiros de Santiago, num contexto que parece quase de guerra civil. Sepultado na Igreja
de S. João de Alporão, em Santarém, o seu epitáfio diz que morreu em Março
de 1207, o que concorda com uma informação do Chronicon conimbricense com poucos dias de diferença. Mas
com a morte e sepultura de Fernando Afonso não fica encerrada a
história dos primeiros bastardos reais de Portugal. Ainda que Afonso
e Fernando
Afonso, os dois bastardos referidos por António Caetano Sousa na
sua História
Genealógica, tenham sido uma e a mesma pessoa, vários são os
historiadores, genealogistas e biógrafos do rei Fundador que sustentam ter ele
tido, de facto, fora do seu casamento, dois filhos varões. Pelo menos.
Frei António Brandão assegura na Monarquia Lusitana que
este segundo bastardo de Afonso Henriques ter-se-á chamado Pedro Afonso, estando a
sua existência comprovada por uma doação.
que ele próprio fez a Fernando,
abade de Alcobaça, e ao seu convento de certa quinta no termo da vila de Tomar.
José Mattoso concorda com o autor da Monarquia Lusitana em que se chamou Pedro
Afonso o outro bastardo
do primeiro rei. Mas afirma também que foi senhor de Arega e Pedrógão,
lugares a que deu foral em 1201 e 1206. Trata-se decerto do mesmo Pedro Afonso que foi alcaide de Abrantes
em 1179 e alferes do rei entre 1181 e 1183. Este último cargo continuou
a exercer no reinado de seu irmão, o rei Sancho I, de quem foi um fiel e
dedicado servidor. Terá participado na conquista de Silves. E o rei Sancho
designou-o por seu testamenteiro. Do segundo bastardo de Afonso Henriques não
há muito mais que se possa dizer. Dos bastardos de Afonso Henriques, só D.
Urraca Afonso terá casado, com Pedro Afonso Viegas, um neto de Egas Moniz que
foi tenente de Trancoso e Neiva. Desse casamento nasceram três filhos, um rapaz
e duas raparigas. Uma delas, D. Sancha Peres de Lumiares, teve copiosa e muito
ilustre descendência em Espanha. É por ela que descendem do primeiro rei de
Portugal a duquesa de Alba, o duque de Feria, Rafael Medina (filho de Nati
Abascal), o marquês de Griñon e o marquês de Cubas, entre muitos outros.
Os oito enteados da Rainha Doce
Sancho I, o Povoador, nascido
em 1154, casou em 1175 com D. Dulce (ou Aldonça
ou, simplesmente, Doce), que era filha do conde de Barcelona e da rainha de Aragão
e podia ser, mas não há a certeza de que fosse, viúva de Armengal, conde de
Urgel. Desse casamento nasceram nada menos do que 11 filhos:
- Afonso, que sucedeu a seu pai;
- Pedro, que foi conde de Urgel e teve dois bastardos, Rodrigo, eminente em letras, e Fernando Pedro de Portugal, de quem não há mais notícias;
- Fernando, que foi conde da Flandres;
- Henrique e Raimundo, que morreram meninos;
- D. Teresa, beatificada pela Igreja, que foi rainha de Leão;
- D. Mafalda, também beata, que foi rainha de Castela;
- D. Sancha, senhora de Alenquer, que foi freira no Mosteiro de Celas e a Igreja igualmente beatificou;
- D. Branca, senhora de Guadalajara, em Espanha;
- D. Berenguela, ou Berengária, que foi rainha da Dinamarca, onde não deixou saudades mas deixou uma descendência que expandiu o sangue de Portugal por essa Europa fora; D. Constança, que morreu solteira, aos 20 anos de idade.
Esta numerosa prole de filhos legítimos não impediu o Povoador de ter vários bastardos, mais
exactamente: oito, que Sancho há-de ter estimado mas nunca confundiu
com os filhos nascidos do seu casamento, como se prova pelo seu testamento. Com
efeito, enquanto aos filhos legítimos
deixa, a todos igualmente, a quantia de 40.000 morabitinos, tal como faz às
filhas, acrescentando ainda propriedades e mais 200 marcos de prata, aos
ilegítimos destina apenas 8.000 aos varões e 6.000 às mulheres. Dois
deles, Martim Sanches e D. Urraca Sanches, nasceram da relação do
monarca com D. Maria Aires de Fornelos, nobili pulchra concubina
que foi filhada, por Sancho ainda em vida da doce e discreta D. Dulce. Talvez por isso o
autor da Crónica Breve do Arquivo Nacional tivesse escrito que a mãe
destes bastardos era uma dona de que
se nom pode saber o nome. Terminada a relação, o rei tratou de casá-la
com Gil Vasques de Soverosa, um dos fidalgos mais poderosos de Além-Douro.
D. Urraca Sanches foi criada com o irmão em Ponte de Lima e
casou com Lourenço Soares, tenente
de Lamego e Viseu. Este era neto de Egas Moniz mas também de D. Urraca
Henriques, irmã do primeiro rei de Portugal e, portanto, tia-avó de D.
Urraca Sanches. Estava viúva em 1220
e ainda vivia em 1256. Mas não
deixou descendência. Martim Sanches, esse, é considerado o
mais notável dos bastardos de Sancho I. Homem de grandes e elevados espíritos, teve papel de grande destaque
na guerra que se travou entre o rei Afonso II, seu irmão, e o partido senhorial,
que Estêvão Soares Silva, o arcebispo de Braga, encabeçava e onde Martim
Sanches também militava. Após a morte de Sancho I, de quem tinha recebido
dinheiro e bens na região de Guimarães, Martim sentiu-se agravado por Afonso II
e, saindo de Portugal, tornou-se vassalo do rei de Leão, Afonso IX, que era,
aliás, seu primo co-irmão, por ser filho da infanta D. Urraca, irmã de Sancho. Foi nomeado adiantado-régio nos
reinos de Leão e Castela. E nessa qualidade interveio em Portugal nos conflitos
que opuseram Afonso II às infantas suas irmãs, que irmãs também eram de Martim
Sanches, e, depois, ao arcebispo de Braga. Estêvão Soares Silva
sofreu as represálias do rei pelas posições que contra ele tinha tomado,
incluindo a sua excomunhão, que o papa Honório III confirmou. Essas represálias
foram exercidas sobre os bens que o arcebispo possuía em Braga e Coimbra, mas
também no território galego de Límia. Ora, deste território era governador Martim
Sanches, que pegou em armas e dirigiu-se para Ponte de Lima, onde
Afonso II então se encontrava.
Este retirou-se para o Castelo
de Gaia, confiando a defesa do território a Mendo Gonçalves Sousa, João Pires Maia
e Gil Vasques Soverosa. Os portugueses foram derrotados e tiveram de se retirar
para Braga e Guimarães, enquanto os galegos devastavam a região. Depois
de humilhar o rei de Portugal, Martim Sanches foi muito favorecido
pelo rei de Leão, que lhe deu quatro condados, incluindo o de Trastâmara.
Casado com D. Eulália Perez de Castro, não teve semel, querendo dizer semente ou geração». In Isabel Lencastre, Bastardos
Reais, Os Filhos Ilegítimos dos Reis de Portugal, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-555-845-2.
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