Moisés
«(…) Moisés, de cabeça branca na trouxa do pelico e grande barba de
profeta, alva, crescendo sobre o peito, só suja junto à boca, no queixo e nas
narinas, tem a tarimba na cavalariça hoje quase vazia, separada da casa dos
patrões, para os trazer da quinta; a quinta é fresca ilha no seco mar do
Alentejo, ilha que dois séculos e mais de meio antes os frades descobriram; ao
canto um edifício barroco de finalidade indefinida, em forma de capela, curta e
curva, tendo um tanque no meio, estilo árabe, os quatro evangelistas em azulejo
a cada ângulo, com os nomes por baixo e, nas três paredes livres, excluindo a
da porta, três esculturas tonsuradas, de santos ou de padres em pau, um de
livro e caveira, outro sem nada de notável a não ser a careca, o terceiro com
um livro aberto, no qual se lê em grossas letras: in gloriam maiorem de, e adiante, sobre a madeira sem tinta,
escrito a lápis indeciso de criança, Caril Chessman condenado à morte e
morto ao fim de doze anos de prisão cela
2455 caixa postal 66565 São Quintin Califórnia, fora, em relevo de pedra,
a data de 1705 e, mais abaixo, reconstruído em mil novecentos e
qualquer coisa, à volta, por cima dos quatro bancos de pedra, quatro painéis
azulejados azuis setecentistas, com os do liceu de Évora, representam as
estações do ano em figuras balofas de bacos e mulheres; ao lado uma pedra tapa,
segundo a tradição, a secreta passagem para o convento na colina, em ruína com
sua branca torre fina triangular de cinco sinos, donde todas as tardes os frades
menores vinham defender-se do sol sob as sombras da quinta, beber a água férrea
no grande tanque cheio de limos brilhantes, móveis, verdes, castanhos ou vermelhos
na base, e até um pouco patuscar; perto a nora; durante o inverno os alcatruzes
eram colocados à banda, por cima dos ferros que sustentam a roda, e aí se descobria,
chegada a primavera, uma densa rede de teias de aranha, fulgurando ao sol;
entre o viveiro de laranjeiras e a nora, a água caía para o tanque numa
frescura de bolhas e de espuma que, depois de ter descido aí meio metro, acima
regressava em movimentos de algas; era o tanque em que as mulheres, as criadas,
à tarde, lavavam, conversando, debaixo da parra e das nespereiras; impossível
alguém permanecer ao pé daquela água sem ter sede; para além da sebe, a sul da
nora, as oliveiras magras, sequiosas, de um verde que o calor torna cinzento ou
azulado, com bolsas redondas e disformes nos ângulos da seca, corcundas sôfregas
de seiva, aleijões, dementes dispersados pelos montes, que é preciso tratar,
podar e não esgalhar barbaramente por sete anos, como faziam dantes, caiar para
que o fruto seja bom, o azeite denso e fino, semear a terra de tremoço,
tremocilha ou grão que as adobem de azoto, não de pão de pragana que lhes tira
a força, as envelhece, as enche de cogumelos pelo pé, deixando-as um dia
inúteis, envoltas em silêncio, animais na noite, lobisomens postos nos
caminhos, árvores velhas do alarme, da revolta e da paz; no cabeço próximo um moinho
sem velas, habitado e bem brancaiado, guardado por dois eucaliptos altos, de
folhagem rala muito lá em cima; junto dele os postes e os fios da luz; e pelas hortas
em volta, com a primavera, logo ao São Brás, quando as searas despontam e as
cegonhas verás, há espantalhos de latas de conserva de peixe quase em cada árvore
ou de fios ligados a uma cana com penas de galinha ou mesmo só um saco vazio e
emborcado, acenando um tanto no calor imóvel; os campos estão quentes de
papoilas, das fisgadas dos gaiatos aos ninhos e do balir intenso dos cordeiros
pastando, de olhos brancos, para a páscoa; trigos cerrados assoberbam-se, embora
com ervas daninhas pelo meio, enquanto as favas irradiam já seu cheiro acre; a
lenha amontoa-se pelos campos à espera que a transportem, forma vultos de medo
em meio da noite, e as casas são claros fantasmas; a reca marrã branca teve na
véspera um ror de bácoros magros, com o corpo pelado, cor-de-rosa rugado e
cabeças ternas de tão feias, sob translúcidas orelhas; ela está deitada na
pocilga ao final do quintal e marra-lhes e morde com cautela e cuidados quando
os filhos, em vez de caminharem prá barriga, buscam as tetas nas costas; postos
como cachorros uns por cima dos outros, só as caudas ágeis ainda não laçadas
mexem tensas; Moisés não pensa nos bacorinhos sem se comover; praticamente
sempre os olhos enevoados; limpa-os, e às ramelas, com as costas da mão; mãos
gretadas, rudes, dedos papudos, angulados para cima, longos até às unhas
cortadas muito rentes, a direito, negras em espátula; puxa com as mãos o
cobertor para o peito, para as barbas e o pescoço engelhado; sem ser capaz de dormir,
olha a noite lá fora e a luz pela janela; olha tranquilo o sono e a vigília;
sem pressa, sem nenhuma pressa; também não sonha; diz que não está já em idade de
sonhar; não se lastima nunca do tempo que passou mas do que passa; vê os
poentes e os círculos da tarde, enche o coração de uma alegria calma; dá ao
silêncio o seu valor e não busca nos homens senão o que não sabem; ouve o vento
distante e não se move; ao canto da açoteia sobre o tecto em que dorme, o vento
faz de quando em vez girar num remoinho rápido uma porção de pó e de cotão com
pétalas de malva, folhas secas de malva e de roseira brava, restos de linhas
com pedaços de pano e papel de jornal, a casca duma barata meio encarniçada no
ventre e na base das patas como pentes, os anéis a dessoldar-se e a cabeça
larga chata; o bom Moisés, de boca pregueada, nariz curvo de velho, molhado,
rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas, camisa xadrez, meias
sujas suadas, e recorda, desperto, sem querer». In Almeida Faria, A Paixão, 1965,
Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.
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