domingo, 30 de março de 2014

Noite de 15 de Julho de 1900. Conferência Pública. Atheneu Commercial de Lisboa. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «… se elle estava convicto de que o sacramento do matrimonio remontava aos primeiros séculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opiniões casando-se catholicamente?»


jdact

«(…) Herculano, com a sua crença religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a Companhia de Jesus fazia no christianismo; por isso mostra-nos, em muitas das suas paginas immortaes, quão perigosa é para o futuro da nossa pátria essa sociedade fundada no século XVI por Santo Ignacio de Loyola e cujas intrigas obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distinctos da Universidade de Coimbra. Na prosa mais poética e viril que nos apresenta a nossa litteratura, expoz e criticou os factos mais interessantes da historia do ultramontanismo; com a sua vista de aguia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer em nossos dias. Theophilo Braga censura a Herculano o seu ardor em combater o jesuitismo e os novos dogmas introduzidos na religião catholica, dizendo que elle dispendeu as suas forças contra os moinhos de vento do marianismo, do infallibilismo e do syllabismo e que o jesuitismo se tornou para elle uma preoccupação constante; mas, como o auctor da Historia do romantismo se tem occupado dos mesmos assumptos, é evidente que escreve contra si próprio, o que me causa verdadeiro pasmo. Alem d'isto a censura feita a Herculano recae sobre a própria imprensa republicana, que muito frequentemente narra e estigmatiza escândalos jesuíticos. É o poder da igreja tão pequeno que se não devam combater com a máxima energia as suas doutrinas contrarias ao bem social? Tem porventura o jesuitismo tão pouca força que se deva considerar um elemento desprezível?
Não tem a Companhia de Jesus progredido assombrosamente no nosso país? Não estão os colégios jesuíticos repletos de alumnos? Leibnitz, um dos génios mais vastos e profundos não só da Allemanha mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: Dae-me a educação, que eu transformarei a Europa em menos de um século. Alexandre Herculano, com o seu profundo critério, conhecia a grande força da educação; por isso receava que o jesuitismo viesse causar a decadência intellectual e moral da sua pátria. A moral perversa dos jesuítas foi no século XVII posta a descoberto não por um impio, não por um atheu, mas por um dos mais eloquentes e profundos apologistas do christianismo, por um génio prodigioso que, depois de ter feito os mais assombrosos descobrimentos scientificos, depois de ter penetrado vários segredos da natureza, depois de ter resolvido os mais difficeis problemas da mathematica, levantou, em favor do christianismo, esse grandioso monumento philosophico intitulado Pensamentos, que, apesar de ter ficado incompleto, revela a profundeza do génio que o traçou; este grande homem, este escriptor religiosíssimo, este moralista austero, que se chamava Blaise Pascal, foi quem mais poderosamente contribuiu para a queda dos jesuítas no século XVIII. As suas Provinciaes, escriptas num estylo comico e vigoroso, espalharam-se por toda a Europa e as máximas corruptas dos jesuítas foram ridicularizadas não só nas academias mas até nos palácios dos reis. Como poderia Herculano, o enthusiasta ardente da moral pura e severa do Evangelho, deixar de combater energicamente as doutrinas anti-christãs da seita jesuítica?
Diz Theophilo Braga que Herculano, depois de se mostrar partidário do casamento civil, veiu a casar-se catholicamente; o distincto professor acha este procedimento contradictorio com as opiniões de Herculano. Quando, ao ler a Historia do romantismo, encontrei esta asserção tão infundada, fiquei realmente estupefacto. Theophilo Braga inverte completamente as doutrinas de Herculano, expostas com tanta lucidez nos seus Estudos sobre o casamento civil, e colloca-se a uma distancia que lhe torna impossível apreciá-lo com exactidão. Não ha escripto algum em que Herculano tivesse combatido o casamento catholico; pelo contrario, elle admittia duas espécies de casamento: o catholico e o civil. O que repugnava ao seu espirito profundamente liberal e tolerante é que os indivíduos que não acreditassem no catholicismo se vissem obrigados a receber o sacramento do matrimonio, a praticar um acto contrario ao seu modo de pensar e que elle considerava um verdadeiro sacrilégio, uma offensa á religião. Se Herculano era um velho catholico, se elle estava convicto de que o sacramento do matrimonio remontava aos primeiros séculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opiniões casando-se catholicamente? Herculano nunca defendeu leis que prohibissem a qualquer individuo o seguir as suas crenças, tinha o mais profundo respeito pela liberdade de consciência, era inimigo de todas as violências feitas ao espirito humano, queria liberdade para todos, não era intolerante como os hypocritas da liberdade, que não respeitam a consciência alheia. Herculano sustentou que devia existir um registo civil especial para os casamentos dos não catholicos, não admittindo que os nubentes fossem interrogados acerca das suas crenças religiosas, o que, segundo a sua opinião, seria um attentado contra a liberdade de consciência, um processo verdadeiramente inquisitorial. Quanto ao casamento catholico, considerava-o debaixo de dois aspectos: como sacramento e como contracto. Estando num país, cuja maioria era constituída por catholicos, admittia que o registo ecclesiastico servisse de registo civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o princípio sacrosanto da liberdade de consciência com o respeito á religião do estado. Sejam quaes forem as opiniões acerca das doutrinas sustentadas por Herculano relativamente ao casamento civil, é incontestável que não ha fundamento algum para se affirmar que o seu casamento catholico esteve em contradicção com as suas idéas». In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.

Cortesia de LTCardoso Irmão/JDACT