«(…) Herculano, com a
sua crença religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a
Companhia de Jesus fazia no christianismo; por isso mostra-nos, em muitas das
suas paginas immortaes, quão perigosa é para o futuro da nossa pátria essa
sociedade fundada no século XVI por Santo Ignacio de Loyola e cujas intrigas
obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distinctos da Universidade de Coimbra.
Na prosa mais poética e viril que nos apresenta a nossa litteratura, expoz e
criticou os factos mais interessantes da historia do ultramontanismo; com a sua
vista de aguia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer em nossos dias.
Theophilo Braga censura a Herculano o seu ardor em combater o jesuitismo e os
novos dogmas introduzidos na religião catholica, dizendo que elle dispendeu as
suas forças contra os moinhos de vento do marianismo, do infallibilismo e do
syllabismo e que o jesuitismo se tornou para elle uma preoccupação constante;
mas, como o auctor da Historia do
romantismo se tem occupado dos mesmos assumptos, é evidente que escreve
contra si próprio, o que me causa verdadeiro pasmo. Alem d'isto a censura feita
a Herculano recae sobre a própria imprensa republicana, que muito frequentemente
narra e estigmatiza escândalos jesuíticos. É o poder da igreja tão pequeno que
se não devam combater com a máxima energia as suas doutrinas contrarias ao bem social? Tem porventura o
jesuitismo tão pouca força que se deva
considerar um elemento desprezível?
Não tem a Companhia de Jesus progredido assombrosamente
no nosso país? Não estão os colégios
jesuíticos repletos de alumnos? Leibnitz, um dos génios mais vastos e
profundos não só da Allemanha mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: Dae-me
a educação, que eu transformarei a Europa em menos de um século.
Alexandre Herculano, com o seu profundo critério, conhecia a grande força da
educação; por isso receava que o jesuitismo viesse causar a decadência intellectual
e moral da sua pátria. A moral perversa dos jesuítas foi no século XVII posta a
descoberto não por um impio, não por um atheu, mas por um dos mais eloquentes e
profundos apologistas do christianismo, por um génio prodigioso que, depois de
ter feito os mais assombrosos descobrimentos scientificos, depois de ter
penetrado vários segredos da natureza, depois de ter resolvido os mais difficeis
problemas da mathematica, levantou, em favor do christianismo, esse grandioso
monumento philosophico intitulado Pensamentos, que, apesar de ter ficado
incompleto, revela a profundeza do génio que o traçou; este grande homem, este
escriptor religiosíssimo, este moralista austero, que se chamava Blaise Pascal,
foi quem mais poderosamente contribuiu para a queda dos jesuítas no século XVIII.
As suas Provinciaes, escriptas num estylo comico e vigoroso,
espalharam-se por toda a Europa e as máximas corruptas dos jesuítas foram ridicularizadas
não só nas academias mas até nos palácios dos reis. Como poderia Herculano, o
enthusiasta ardente da moral pura e severa do Evangelho, deixar de combater
energicamente as doutrinas
anti-christãs da seita jesuítica?
Diz Theophilo Braga que Herculano, depois de se mostrar partidário do
casamento civil, veiu a casar-se catholicamente; o distincto professor acha
este procedimento contradictorio com as opiniões de Herculano. Quando, ao ler a
Historia
do romantismo, encontrei esta asserção tão infundada, fiquei realmente estupefacto.
Theophilo Braga inverte completamente as doutrinas de Herculano, expostas com
tanta lucidez nos seus Estudos sobre o casamento civil, e colloca-se
a uma distancia que lhe torna impossível apreciá-lo com exactidão. Não ha
escripto algum em que Herculano tivesse combatido o casamento catholico; pelo
contrario, elle admittia duas espécies de casamento: o catholico e o civil.
O que repugnava ao seu espirito profundamente liberal e tolerante é que os
indivíduos que não acreditassem no catholicismo se vissem obrigados a receber o
sacramento do matrimonio, a praticar um acto contrario ao seu modo de pensar e
que elle considerava um verdadeiro sacrilégio, uma offensa á religião. Se Herculano
era um velho catholico, se elle estava convicto de que o sacramento do
matrimonio remontava aos primeiros séculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra
as suas opiniões casando-se catholicamente? Herculano nunca defendeu
leis que prohibissem a qualquer individuo o seguir as suas crenças, tinha o
mais profundo respeito pela liberdade de consciência, era inimigo de todas as
violências feitas ao espirito humano, queria liberdade para todos, não era
intolerante como os hypocritas da liberdade, que não respeitam a consciência
alheia. Herculano sustentou que devia existir um registo civil especial para os
casamentos dos não catholicos, não admittindo que os nubentes fossem
interrogados acerca das suas crenças religiosas, o que, segundo a sua opinião,
seria um attentado contra a liberdade de consciência, um processo verdadeiramente
inquisitorial. Quanto ao casamento catholico, considerava-o debaixo de dois
aspectos: como sacramento e como contracto. Estando num país, cuja maioria era
constituída por catholicos, admittia que o registo ecclesiastico servisse de
registo civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o princípio
sacrosanto da liberdade de consciência com o respeito á religião do estado.
Sejam quaes forem as opiniões acerca das doutrinas sustentadas por Herculano
relativamente ao casamento civil, é incontestável que não ha fundamento algum
para se affirmar que o seu casamento catholico esteve em contradicção com as
suas idéas». In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública
realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria
Editora Tavares Cardoso Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.
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