segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Como eu gostava, frei Gaspar, disse ele, virando-se para o velho irmão, de ter a idade e o sangue na guelra destes bons noviços, o irmão Diogo e o irmão João, que espero o sejam muito breve»

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A Letra Pitagórica
«(…) Falasse baixo! Não lhe fizesse perguntas a que não podia responder, e impaciente levantava-se. Ouviram-se passos no lajedo exterior. Também já de pé, insisti em voz sumida, nervosa: que sabeis de mim? Diogo entrava. Eram horas de repousarmos, dizia frei Gaspar. Que o seguíssemos. Ia mostrar-nos onde dormirmos. Não consegui por muito tempo conciliar o sono. Receava mais uma vez não tornar a ver frei Gaspar, mas de manhã, depois das orações e da missa, o velho frade esperava-nos para nos levar junto do prior do convento. Era este um homem alto, robusto, cabeça a alargar em triângulo a partir do queixo, nariz comprido, cabelo espetado como escova cortado muito curto, grisalho nas têmporas, olhos vivos, atentos, voz fanhosa. Tinha fama de grande filósofo. Pairava nas alturas do pensamento abstrato: notava-se o esforço que fazia para descer daqueles paramos até às coisas insignificantes e caducas que nós éramos, mas como era sábio conhecia-se também a si próprio e, dando conta do esforço que fazia, tornava-se então humilde, simples e dizia coisas graciosas. Afirmavam os que o conheciam de perto, e eu ali o confirmei, que eram essas as únicas ocasiões em que se lhe abria o semblante num sorriso que lhe transfigurava o aspecto severo. Ajoelhando levemente, beijei-lhe o anel, tal como Diogo, sentindo a resistência que a sua mão fazia na minha a contrariar um costume de que se não sentia digno.
Dir-se-ia que até isso havia sido objecto de exame do seu espírito alertado. Deus vos abençoe. Como eu gostava, frei Gaspar, disse ele, virando-se para o velho irmão, de ter a idade e o sangue na guelra destes bons noviços, o irmão Diogo e o irmão João, que espero o sejam muito breve. Mas já não tenho pernas para tais andanças!... Não sei como, encontrei-me a dizer-lhe: em vez de pernas, tem vossa paternidade as asas do pensamento que permitem os vôos altos das águias, ao passo que nós rastejamos como pobres vermes... Era demasiado retórica a frase e postiça. Verduras! Frei Gaspar ficou interdito, Diogo corou como uma romã, o prior todavia olhou-me com um sorriso luminoso: falava eu por metáfora? Prouvesse a Deus fosse verdade o que eu dizia. De qualquer maneira agradecia-me a palavra amável. Aliás, quem falava como eu não era de forma alguma um bicho rastejante. Deixasse-lhe contudo dar-me um conselho que lhe estava ditando a experiência. Eu pensava e pensar era o começo do ..., do tormento. Eu sei, concluí eu. Olhou-me fundo nos olhos, a espreitar-me os pensamentos íntimos. Tão novo falais assim!... É cedo, é muito cedo ! Sursum corda, irmão! Rezarei por vós. Frei Gaspar, curai de que lhes não falte nada, dizia o prior, como se já outros pensamentos o solicitassem. Quando partis? Ficai o tempo que quiserdes... Dou-vos a bênção.
Com a mão direita erguida, o anel a rebrilhar, traçou no ar a cruz, fitando-me acintemente: benedíco vos, in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. E quando, depois de inclinados termos proferido o amem, levantámos as cabeças, já só o vimos de costas a desaparecer na umbreira de uma porta. Ficamos ali especados, com o indefinido sentimento, eu mais que os outros dois, de que algo de não certo, de inadequado, de não coadunado com a situação, se esfumava pairando no ar. Frei Gaspar cortava o enleio: Bem! Já tínhamos a bênção do prior. Decerto queríamos agora visitar a vila. Era digna de se ver. Tinha pena de não poder servir-nos de guia, pois não poderia aguentar a nossa agilidade no andar, senão ainda nos mostraria algumas curiosidades daquelas que falam da vetustez dessas pedras... Mas eu interrompia, discordando. Muito gratos ficaríamos a frei Gaspar, não era verdade, irmão Diogo?, se nos quisesse acompanhar na visita. Quanto à nossa destreza de andarilhos, prometíamos que o travão da curiosidade lhe abateria a fervura... Irmão Diogo anuía. Frei Gaspar não quis perder a oportunidade, havia tanto tempo madrasta, segundo dizia, de um pouco de liberdade.
É esta uma terra realenga desde Afonso V, vai ele dizendo enquanto caminhamos pela sombra dos choupos que marginam o Asseca». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

O Manuscrito do Imperador. Valeria Montaldi. «Observe, meu senhor, disse, estendendo a mão para aflorar dois símbolos, tanto Plutão quanto Júpiter não fazem senão confirmar o vaticínio: rivalidade, perigo e talvez... Hesitou»

Cortesia de wikipedia e jdact

… destas cidades restará o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht

Parma. 1248
«(…) Os Apuanos erguiam-se imponentes diante dele. Os cimos estavam cobertos por nuvens espessas, cinzentas como chumbo: impelidas por um vento gélido, iam se deslocando para leste. Do oeste, outra frente de nuvens, ainda baixa no horizonte, avançava lentamente para a costa. Voltou-se para o mar: à distância, a água parada dos paludes se misturava com a ressaca. No porto quase deserto, um único navio estava fundeado, e quatro barcos de pescadores ondulavam junto à margem. Uma rajada de vento o acometeu, levantando um redemoinho de poeira que o cegou. Frederico esfregou os olhos irritados e entrou de volta na tenda.

Marca Trevigiana. Março de 1249. Castelo de Solagna
Os reflexos da tocha dançavam nas paredes da sala, atenuando-se pouco a pouco na leve luminosidade dos primeiros clarões da alvorada. Sobre o piso de carvalho, estendia-se uma grande folha de papel de cânhamo na qual estava traçado um círculo dividido em 12 gomos: ligados por linhas intricadas como os fios de uma teia de aranha mal-sucedida, os signos zodiacais tinham sido desenhados na borda externa da circunferência. Paulo Bagdá observava-os em silêncio. As mãos morenas, afuseladas como as de um alaudista, afundavam-se no regaço, entre as dobras da veste. Os pés, calçados com preciosas babuchas de seda, despontavam sob as pernas cruzadas. Agachado diante dele, Ezzelino o fitava, impaciente. E então, impacientou-se, levantando-se de chofre, ainda falta muito para termos um vaticínio? O sarraceno ergueu os olhos. Meus lábios ainda não estão prontos para pronunciar o oráculo que está se formando na minha mente, senhor, respondeu, severo.
Intimidado a contragosto, Ezzelino o encarou e se acocorou de novo no chão. Com um suspiro, o astrólogo voltou a examinar a disposição dos planetas. Bem, começou, está vendo aqui a posição de Saturno e de Neptuno? Ambos lhe são hostis e pressagiam incerteza e acções que poderiam ser chamadas de irreflectidas. Por outro lado, Marte e Urano pareceriam propícios, desde que seja exercida a virtude da prudência. Oh, bem sei que, continuou, levantando a mão para parar a réplica irritada que estava prestes a sair dos lábios do seu patrão, depois que a sua decisão está tomada, o senhor não gosta de protelar, mas neste caso é necessário reflectir mais sobre o que fazer. Embora eu ignore o objecto da busca para a qual solicitou o meu parecer, posso dizer que os trânsitos que estão à sua frente falam claro. Até agora, uma indubitável competência lhe permitiu superar facilmente as adversidades, sua habilidade em alcançar os objectivos que estabeleceu está fora de discussão, o domínio sobre as situações mais arriscadas lhe pertence por instinto, mas de agora em diante o senhor deve prestar mais atenção.
Aqui, lê-se que está tomado por uma ilusão e que desejos incontrolados poderiam guiar as suas acções. Observe, meu senhor, disse, estendendo a mão para aflorar dois símbolos, tanto Plutão quanto Júpiter não fazem senão confirmar o vaticínio: rivalidade, perigo e talvez... Hesitou. Talvez ruína. Incrédulo, Ezzelino fitou o astrólogo. O sarraceno sustentou o olhar dele em silêncio. Depois recolheu a folha e enrolou-a. Pode ir, agora, disse Ezzelino, com voz incolor. Se eu ainda precisar de você, mandarei chamá-lo. Paulo Bagdá levantou-se, inclinou a cabeça numa saudação deferente e saiu. Ezzelino deu alguns passos inquietos pela sala. Chegou à janela, subiu o degrau escavado na chanfradura e olhou para fora. Logo abaixo dos muros do castelo fluía o Brenta: sombreadas pelas árvores, as duas margens estavam cobertas de seixos, e a corrente do rio, já cheia, reluzia aos raios oblíquos do sol ainda baixo no horizonte». In Valeria Montaldi, O Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial Record, 2011, ISBN 978-850-108-703-4.

Cortesia de GERecord/JDACT

Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio P. Couto. «A abertura destas fontes históricas refere-se, nomeadamente, a toda a actividade diplomática da Santa Sé, no período que antecedeu a II Guerra Mundial…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…)
A abertura dos Arquivos
Claro que os conspirólogos fazem a festa e deliram em cima do que possa haver por lá, que iria desde algum texto assinado pelo próprio Jesus Cristo, até relíquias de santos medievais preservadas por motivos escusos. O facto é que a conservação que os especialistas dos arquivos realizam parece dar o efeito necessário. A editora que cuidou da reprodução da carta de Henrique VIII afirmou, na época do lançamento das cópias, que no pergaminho (do Vaticano) estão pendurados lacres magnificamente conservados, enquanto o documento que ficou na Inglaterra está em estado de conservação precário. Em algumas partes chega a ser ilegível e não há nenhum lacre. Se a Inglaterra, que deveria ter a sua cópia bem-conservada, a tem em estado precário, imagine só como estaria a do Vaticano, com seus 85 lacres, emoldurados em metal e unidos por uma fita de algodão e seda de 40 metros de comprimento. Somente esse documento pesa por volta de 2,5 quilos. Existem actualmente pelo menos dois cargos de destaque na hierarquia ligada aos Arquivos Secretos: o de prefeito dos arquivos, que cuida da administração desse órgão, e o de arquivista, que cuida do acervo em si.

Lendas e Especulações
Por vezes, é claro, as pessoas se deparam com algumas informações inusitadas nos Arquivos. Por exemplo, vejamos a notícia abaixo, divulgada pela agência Acclesia, a agência de notícias da Igreja Católica em Portugal, em Setembro de 2006:

A Santa Sé procede, a partir de hoje, à abertura da totalidade dos arquivos do pontificado do papa Pio XI (1922-1939). Até agora, apenas uma parte destes arquivos está disponível para consulta aos investigadores. A abertura destas fontes históricas refere-se, nomeadamente, a toda a actividade diplomática da Santa Sé, no período que antecedeu a II Guerra Mundial, e foi decidida por Bento XVI, seguindo um desejo já antes manifestado pelo seu antecessor João Paulo II. Assim, passarão a estar disponíveis à investigação histórica, nos limites dos regulamentos, todos os fundos documentais até a Fevereiro de 1939 [...] nomeadamente os Arquivos Secretos do Vaticano e os arquivos da segunda secção da Secretaria de Estado responsável pelos negócios diplomáticos, concretiza o comunicado. O trabalho de cerca de 20 pessoas, nos últimos quatro anos, torna possível a abertura dos Arquivos Vaticanos relativos ao Pontificado de Pio XI (1922-1939) e, com isso, o acesso a um enorme campo de pesquisa histórica. O período abarca as trágicas consequências da I Guerra Mundial, o percurso que levou à II Guerra Mundial; a chegada ao poder de Mussolini, Hitler ou Estaline; a crise de 1929, as guerras coloniais e civis, e as leis raciais alemãs e italianas, entre outros acontecimentos. Pio XI foi uma presença notável, nesta altura: resolveu a questão romana com os Pactos Lateranenses (1929), protegeu e aumentou a Acção Católica, celebrou o Jubileu de 1925 e o extraordinário em 1933-1934, planeou um enorme projecto missionário que chegou à China, desenvolveu a sua acção para o Oriente, olhou com olhos novos a ciência, estabeleceu relações diplomáticas entre a Santa Sé e vários países do mundo. O prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, o padre Sergio Pagano, anunciou oficialmente já em 2002 que, após a abertura do Pontificado de Pio XI, tudo se fará para disponibilizar as fontes documentais vaticano-alemãs relativas ao pontificado de Pio XII (1939-1958), em parte já publicadas por vontade de Paulo VI nos 12 volumes (1965-1981) dos Actes et documents du Saint-Siège relatifs a la seconda guerra mondiale. Há algum tempo está também disponível o fundo do departamento de informações vaticano para os prisioneiros de guerra, que compreende documentos de 1939 a 1947. Além disso, foram também abertos os arquivos das nunciaturas de Munique e de Berlim até 1939.

Em Julho de 2010, a editora belga VdH Books anunciou o lançamento do livro The Vatican secret Archives, com nada menos que 252 páginas cheias de fotografias do complexo e reproduções de documentos restritos. Auxiliada pelo cardeal Raeffaele Farina, o actual arquivista do local, a equipa do livro teve autorização para apresentar algumas reproduções dos arquivos, com comentários históricos detalhados do religioso». In Sérgio P. Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, Da Inquisição à renúncia de Bento XVI, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

Cortesia de EGutenberg/JDACT

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Que mal havia nisso? Que significava aquele medalhão que eu trazia ao peito?»

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A Letra Pitagórica
«(…) Eu ia pensativo. Não era a primeira vez que eu pensava nas minhas mãos, as cotejava com as dos meus companheiros, com as das outras pessoas. Dir-se-ia que alguma coisa lhes rectificara, apurara e adoçara as linhas, havia nelas o que quer que fosse de feminino. Quando me quedava em frente de uma galeria de retratos, por vezes mais que os olhos e a expressão do rosto eram as mãos que me tomavam a atenção. As minhas pareciam mãos de um retrato. Considerando que a velha cigana era pessoa habituada a ver mãos de toda a maneira e feitio, não era de estranhar que tivesse logo dado conta de que as minhas eram fora do normal. A sua hesitação em ler a sina interpretava-a eu como o desejo de se adaptar a uma situação que pretendia deitar-se a adivinhar. Como, porém, conservando-me calado, lhe não dei qualquer espécie de lamiré, ela encontrou-se desasada. Não cuidei mais do caso.
Chegámos a Tavira pelo fim da tarde. Entrando as muralhas pelo Arco da Misericórdia dá-se com uma cidade sossegada, pouco movimentada, e logo nos chama a atenção a substituição dos terraços e açoteias, que doutras terras vizinhas são característica, pelo telhado mourisco de quatro águas, as gelosias quase sempre fechadas, a resguardar o recato das casas, a multidão de igrejas, que as há espalhadas por toda a cidade. No porto fundeadas muitas embarcações vindas de países estrangeiros, o grande porte a contrastar com os pequenos barcos dos pescadores. Na arcada dos Paços do Concelho estavam já a desfazer as tendas da feira e esse era o ponto da cidade em que, àquela hora, ainda havia algum bulício e movimento. Procuramos o Convento de São Francisco e, quando o ostiário abriu a porta, Diogo disse quem éramos e, depois de entregar as obediências para o prior, frei Gaspar Conceição estava?... Que lhe trazia recado do superior do convento de Évora. O ostiário foi dentro, demorou algum tanto e por fim apareceu acompanhado de um frade muito velho. Reconheci-o logo, apesar das mudanças da idade. Que me trazeis recado? Diogo apresentou-lhe uma carta selada que o superior de Évora lhe encomendara entregasse a frei Gaspar. O frade quebrou os selos, leu com atenção e, por momentos, ergueu para mim os olhos, que logo baixou ao encontrar os meus. Dobrou os papéis e com um aberto sorriso e um abraço paternal disse:

Sede bem-vindos, meus caríssimos irmãos. Sua Paternidade, o prior, pede-me que vos dê agasalho. Vinde. Há duas coisas que esperam o franciscano quando regressa do seu peregrinar. Água para se lavar do pó e do suor dos caminhos e o conforto da cozinha. Eu vos guiarei. Vinde.

Passada meia hora, estávamos, limpos e frescos, na grande cozinha abobadada do convento. Propositadamente, como quem depois do banho se esquece de apertar um botão junto ao pescoço, eu deixava entrever o relicário de ouro. Frei Gaspar, depois de nos pôr na mesa uma terrina com feijão, cenoura, couve e rodelas de chouriço, um naco de pão de milho, azeitonas e um pichel de vinho tinto, sentou-se em nossa frente. Perguntou-nos por onde tínhamos andado e nós respondíamos-lhe circunstanciadamente. Via-se que conhecia em minúcia toda a região e tinha gosto em saber a história de cada pedra antiga. Em breve, por esta afinidade de gostos, só eu e ele conversávamos. Diogo levantou-se e perguntou se podia ir breves instantes à capela. Frei Gaspar indicou-lhe por onde seguir para a encontrar e ficamos sós. As pedras das paredes e da abóbada pareceram mais frias, carregaram sobre nós o seu silêncio constrangido. Não sabia o vosso nome, disse eu, mas lembro-me muito bem de vós. Teria eu nove anos, se tanto, e estava não sei onde quando vós..., me falastes na relíquia... Calado, sem um gesto e com ar muito entristecido, frei Gaspar deixava-me falar. Andei à vossa procura no dia seguinte. Nunca mais vos vi ou de vós ouvi, até este momento... Depois levaram-me para Setúbal... De Enxobregas..., murmurou. Mas estas coisas não são para nelas se falar. Da outra vez disse-vos aquilo irreflectidamente. Que mal havia nisso? Que significava aquele medalhão que eu trazia ao peito?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

O Mistério das Catedrais. Interpretação Esotérica. Fulcanelli. «Se a matéria não estiver corrompida e mortificada, diz essa obra, não podereis extrair os nossos elementos e os nossos princípios; e para vos ajudar nessa dificuldade dar-vos-ei sinais para a conhecerdes»

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Paris
«(…) Mas esta negrura que o artista aguarda com ansiedade, cuja aparição vem satisfazer os seus votos e enchê-lo de alegria, não se manifesta apenas durante a cocção. O pássaro negro aparece em diversas ocasiões e essa frequência permite aos autores lançar a confusão na ordem das operações.
Segundo Le Breton, quatro putrefações na Obra filosófica. A primeira, na primeira separação; a segunda, na primeira conjunção; a terceira, na segunda conjunção, que se faz entre a água pesada e o seu sal; a quarta, finalmente, na fixação do enxofre. Em cada uma destas putrefações produz-se a negrura. Tornou-se, portanto, fácil aos nossos velhos mestres cobrir o arcano com um véu espesso, misturando as qualidades específicas das diversas substâncias no decorrer das quatro operações que patenteiam a cor negra. Desta maneira, é muito trabalhoso separá-las e distinguir nitidamente o que pertence a cada uma delas. Eis algumas citações que poderão esclarecer o investigador e permitir-lhe reconhecer o seu caminho neste tenebroso labirinto:

Na segunda operação, escreve o Cavaleiro Desconhecido o artista prudente fixa a alma geral do mundo no ouro comum e torna pura a alma terrestre e imóvel; nessa dita operação, a putrefacção, que eles chamam a Cabeça do Corvo, é muito longa; esta é seguida de uma terceira multiplicação, juntando a matéria filosófica ou a alma geral do mundo.

Há aqui, claramente indicadas, duas operações sucessivas, cuja primeira termina, começando a segunda após a aparição da coloração negra, o que não é o caso da cocção. Um precioso manuscrito anónimo do século XVIII fala assim dessa primeira putrefacção, que não se deve confundir com as outras:

Se a matéria não estiver corrompida e mortificada, diz essa obra, não podereis extrair os nossos elementos e os nossos princípios; e para vos ajudar nessa dificuldade dar-vos-ei sinais para a conhecerdes. Alguns Filósofos também o observaram; Morien diz que é necessário que se note alguma acidez e que tenha um odor de sepulcro; Filaleto diz que é necessário que ela tenha a aparência de olhos de peixe, ou seja, de pequenas bolhas à superfície, e que pareça que espuma; porque é um sinal de que a matéria fermenta e borbulha. Esta fermentação é muito longa e é preciso ter grande paciência, porque se faz pelo nosso fogo secreto, que é o único agente que pode abrir, sublimar e putrificar.

Mas de todas estas descrições as que se referem ao Corvo (ou cor negra) da cozedura são, de longe, as mais numerosas e as mais consultadas porque englobam todos os caracteres das outras operações. Bernardo, o Trevisano, exprime-se desta maneira: notai então que quando o nosso composto começa a estar embebido da nossa água permanente então todo o composto se converte numa espécie de resina fundida e fica todo enegrecido como carvão. E ao chegar a esse ponto o nosso composto é chamado resina negra, sal queimado, chumbo fundido, latão não puro, Magnésia e Melro de João. Porque nessa altura vê-se uma nuvem negra, flutuando na região média do vaso, de bela e suave maneira, ser elevada acima do vaso e no fundo deste está a matéria fundida, semelhante a resina, que ficará totalmente dissolvida. Dessa nuvem fala Jacques do burgo S. Saturnin, dizendo: ó bendita nuvem que voas pela nossa redoma! Lá está o eclipse do sol de que fala Raymond». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, 1975, Lisboa, Colecção Esfinge.

Cortesia de E70/JDACT

O Mistério das Catedrais. Interpretação Esotérica. Fulcanelli. «Revestido da armadura, as pernas protegidas por grevas e o escudo no braço, o nosso cavaleiro encontra-se acampado no terraço de uma fortaleza, a julgar pelas ameias que o rodeiam»

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Paris
«(…) Considerava-se frequentemente que a água que deles se tirava tinha virtudes curativas e era utilizada no tratamento de certas doenças. Abbon, no seu poema sobre o cerco de Paris pelos Normandos, refere vários factos que atestam as maravilhosas propriedades da água do poço de Saint-Germain-des-Prés, existente ao fundo do santuário da célebre abadia. De igual modo, a água do poço de Saint-Marcel, em Paris, escavado na igreja, perto da pedra tumular do venerável bispo, revelava-se, segundo Grégoire de Tours, um poderoso específico de várias doenças. Existe ainda hoje, no interior da basílica ogival de Notre-Dame de Lépine (Marne), um poço miraculoso, chamado Puits de la Sainte-Vierge e no meio do coro de Notre-Dame de Limoux (Aude), um poço análogo cuja água, diz-se, cura todas as doenças; possui esta inscrição:

Omnis qui bibit hanc aquam, si fidem addit, salvus erit. Quem beber desta água, se o fizer com fé, terá saúde.

Teremos brevemente ocasião de referir-nos novamente a esta água pontica, a que os filósofos deram numerosos nomes mais ou menos sugestivos. Diante do motivo esculpido que traduz as propriedades e a natureza do agente secreto, vamos assistir, no contraforte oposto, à cocção do composto filosofal. O artista, desta vez, vela pelo produto do seu labor. Revestido da armadura, as pernas protegidas por grevas e o escudo no braço, o nosso cavaleiro encontra-se acampado no terraço de uma fortaleza, a julgar pelas ameias que o rodeiam. Num movimento defensivo, ameaça com a lança uma forma imprecisa (um raio de luz? um feixe de chamas?) que infelizmente é impossível identificar, tão mutilado está o relevo. Atrás do combatente, um pequeno e bizarro edifício, formado por um envasamento circular, ameado e apoiado em quatro pilares, rematado por uma cúpula segmentada de chave esférica. Sob o arco inferior, uma massa aculeiforme e flamejante dá-nos a explicação do seu destino. Este curioso torreão, fortaleza em miniatura, é o instrumento da Grande Obra, o Athanor, o forno oculto das duas chamas, potencial e virtual, que todos os discípulos conhecem e que numerosas descrições e gravuras contribuíram para divulgar.
Imediatamente acima destas figuras estão reproduzidos dois temas que parecem formar o seu complemento. Mas como o esoterismo se esconde aqui sob aparências sagradas e cenas bíblicas, evitaremos falar deles, para não incorrermos na censura de uma interpretação arbitrária. Grandes sábios, entre os mestres antigos, não tiveram receio de explicar alquimicamente as parábolas das santas Escrituras, cujo sentido tão susceptível é de diversas interpretações. A Filosofia hermética invoca frequentemente o testemunho do Génesis para servir de analogia ao primeiro trabalho da Obra; muitas alegorias do Velho e do Novo Testamento adquirem um relevo imprevisto ao contactarem com a alquimia. Tais precedentes deveriam, simultaneamente, encorajar-nos e servir-nos de desculpa; preferimos, no entanto, limitar-nos exclusivamente aos motivos cujo carácter profano é indiscutível, deixando aos investigadores benévolos a faculdade de exercerem a sua sagacidade sobre os restantes.

Os temas herméticos do estilóbato desenvolvem-se em duas fileiras sobrepostas à direita e à esquerda do pórtico. A fila inferior comporta doze medalhões e a fila superior doze figuras. Estas últimas representam personagens sentadas em pedestais ornados de estrias de perfil ora côncavo, ora angular, e colocados no intercolúnio de arcadas trilobadas. Todas apresentam discos guarnecidos de emblemas variados, referindo-se ao labor alquímico. Se começarmos pela fila superior, do lado esquerdo, o primeiro baixo-relevo mostra-nos a imagem do corvo, símbolo da cor negra. A mulher que o tem nos joelhos simboliza a Putrefação. Que nos seja permitido determo-nos um instante sobre o hieróglifo do Corvo, porque ele esconde um ponto importante da nossa ciência. Exprime, efectivamente, na cocção do Rebis filosofal, a cor negra, primeira aparência da decomposição consecutiva à mistura perfeita das matérias do Ovo. É, no dizer dos Filósofos, a marca certa do futuro sucesso, o sinal evidente da preparação exacta do composto. O Corvo é, por assim dizer, o sinal canónico da Obra, como a estrela é a assinatura do tema inicial». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, 1975, Lisboa, Colecção Esfinge.

Cortesia de E70/JDACT

domingo, 29 de setembro de 2019

Paris é uma Festa. Ernest Hemingway. «Andava a aprender muito com ele, mas não possuía ainda nessa altura meios de exposição que me permitissem explicar este facto a ninguém. Além disso, tratava-se de um segredo»

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(…) Se eu, descendo à tarde, tomasse por diversas ruas, a caminho dos jardins do Luxemburgo, acabava por me entreter a passear neles e depois deitava até ao Musée du Luxembourg, onde se encontravam os grandes quadros que mais tarde foram, na sua maioria, transferidos para o Louvre e para o Jeu de Paume. Ia lá quase diariamente por causa dos Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas que eu vira pela primeira vez no Instituto de Arte de Chicago. Andava a aprender, na pintura de Cézanne, qualquer coisa que convertia o escrever em simples afirmações verdadeiras, num processo incapaz de lhes facilitar as dimensões que eu me esforçava por lhes conferir. Andava a aprender muito com ele, mas não possuía ainda nessa altura meios de exposição que me permitissem explicar este facto a ninguém. Além disso, tratava-se de um segredo. Quando já não havia luz no Luxemburgo, tornava a subir até aos jardins, acabando por ir ao apartamento da Rue Fleurus. 27, que era onde Gertrude Stein tinha o seu estúdio.
Eu e minha mulher havíamos visitado miss Stein e tanto ela como a amiga com quem vivia se haviam mostrado extremamente cordiais e afectuosas. Apreciáramos devidamente o grande estúdio povoado de grandes quadros. Aquilo era como estar numa das melhores salas de um dos mais belos museus, com a seguinte diferença porém: é que ali, além de desfrutarmos de uma vasta lareira que irradiava calor, proporcionando conforto, ofereciam-nos boas coisas de comer, chá e licores de destilação natural, feitos de ameixas escuras, de ameixas amarelas e de amoras silvestres. Essas bebidas, perfumadas e incolores, guardadas em garrafas de vidro lapidado, eram-nos servidas em cálices e, quer fossem de quetsche, de ameixazinhas amarelas ou de framboesas, todas elas sabiam aos frutos de que provinham, e, convertendo-se em fogo concentrado na nossa língua, aqueciam-nos e tornavam-nos comunicativos.
Miss Stein era vasta mas não alta e possuía a construção pesada das camponesas. Senhora de belos olhos, tinha um rosto forte de judia alemã, o qual poderia igualmente pertencer a uma mulher de Friulano. Com a sua maneira de vestir, o rosto cheio de mobilidade e o belo cabelo forte e espesso, que usava puxado para cima, talvez já desde os tempos do colégio, fazia-me lembrar uma camponesa do Norte da Itália. Falava constantemente e, a princípio, a sua conversa incidia sobre pessoas e locais. A sua companheira, dona de uma voz muito agradável, era baixa, muito morena e usava o cabelo cortado à maneira de Joana d’Arc. segundo as ilustrações de Boutet de Monvel, e tinha um nariz fortemente arqueado. Quando a conhecemos, andava a trabalhar num bordado, e o facto de ir trabalhando não a impedia de fazer as honras da casa e de conversar com minha mulher.
Conquanto fosse mantendo a sua conversa pessoal, ia ouvindo também a outra, que a cada passo tratava de interromper. Mais tarde, explicou-me que era ela quem se encarregava de conversar com as esposas. Eu e minha mulher sentíamos que as esposas eram simplesmente toleradas. Mas gostávamos de miss Stein e da sua amiga, embora esta última fosse assustadora. Os quadros, os bolos e a eau-de-vie eram verdadeiramente maravilhosos. Elas pareciam igualmente gostar de nós e tratavam-nos como se fôssemos duas crianças muito bem comportadas, muito boas e prometedoras, e eu sentia que nos perdoavam o facto de gostarmos um do outro e de sermos casados, o tempo se encarregaria de resolver esse assunto, e quando a minha mulher as convidou a tomar chá, elas aceitaram». In Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, 1960, Edição Livros do Brasil, Lisboa, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-145-165-540-7.

Cortesia de ELdoBrasil/CDMundos/JDACT

sábado, 28 de setembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Usted gusta mucho de las chicas y las chicas le gustan mucho de usted. Tíene usted un malo olhado de hace mucho tiempo, pero va le aparecer una persona que le va cambiar la vida»

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A Letra Pitagórica
«(…) Juntando os retalhos da conversa das lavadeiras, ficamos a saber que, quando el-rei João III confirmou o contrato feito por seu pai com o conde de Marialva, Francisco Coutinho, quanto ao futuro casamento do infante Fernando com dona Guiomar Coutinho, interpôs-se o marquês de Torres Novas, João Lancastre, filho do duque de Coimbra, Jorge. Afirmava que tal casamento não se podia realizar dado que a condessa de Marialva e de Loulé já era casada com ele. Grande escândalo e interdição na corte!... João III vê-se entre o dever de manter a palavra de seu pai e a amizade que dedicava ao companheiro de infância João Lancastre neto de João II. Ordena então que o caso fique sob a alçada de um tribunal eclesiástico, visto tratar-se de problema do seu foro. Durante nove anos se arrasta o assunto, sem que se lhe desse resolução, até que por fim, ouvida mais uma vez a condessa, esta nega ter alguma vez casado com o marquês de Torres Novas. Realiza-se então o casamento do príncipe Fernando com Guiomar, casamento infeliz, pois quatro anos passados morrem os filhos do casal, morre o marido e morre a esposa. A versão da maior parte das pessoas era que tais mortes haviam sido castigo de Deus e, como os acontecimentos estavam ainda muito frescos, não se falava doutra coisa e cada vez que contavam a triste história acrescentavam-lhe pormenores ouvidos às comadres das comadres dos compadres: que o marquês estava a definhar de langor no seu palácio de Azeitão; que havia dele e de dona Guiomar uma filha clandestina, freira em Setúbal, que era tal e qual o retrato da mãe; que o próprio rei andava roído de remorsos porque conhecera muito de perto os amores do marquês com a condessa...
Deixamos as mulherzinhas na sua infindável tagarelice e fomos visitar a vila, que era muito pitoresca. O seu castelo conservava ainda trechos de muralha mourisca, junto da qual se erguia um cruzeiro de granito escurecido pelo tempo; o casario típico, de janelas e portas trabalhadas, seus terraços e açoteias, e suas chaminés peculiares em forma de canudos, de espigueiros, de zimbórios e minaretes, de coruchéus; a igreja matriz de portal em ogiva; o hospital ou albergaria da Misericórdia, o pelourinho, a Ermida da Senhora da Conceição, os seus conventos, de que se destacava pela sua beleza e sumptuosidade o dos agostinhos. Demoramos em Loulé apenas o tempo de refazermos as forças e o farnel. No dia seguinte, de manhãzinha, pusemo-nos a caminho. Quando íamos a passar pelo Santuário da Senhora da Piedade, abre-se-nos aos olhos um larguíssimo panorama de terras acidentadas e pobres de vegetação.
No quiere usted leer la sina, jovencito?,era uma velha cigana que se acercara de Diogo, num sotaque meio espanholado. Diogo fez sinal que não com a mão, e a cabeça, mas a velha insistia: tenia un futuro mui bueno, casaria dos veces, seria mui rico y habría diece hijos. Dejasse-le veer su mano que le diria mas cosas. Como o meu companheiro não estivesse pelos ajustes, ela virou-se para mim: usted, loirito? Deje-me leer la buena-dicha. Não me fiz rogado. É meu feitio o convívio com as outras pessoas e o experimentar coisas ainda não sabidas da vida ou ainda não vividas. Estendi-lhe a mão, com grande escândalo de Diogo: não fizesse isso, que era pecado! Em voz baixa ao meu ouvido. A cigana, sem olhar, ia a começar a sua lengalenga quando de repente se calou a mirar-me a palma da mão. Esteve assim uns longos segundos. Que há, tiazinha?, perguntei a rir. Que vês na minha mão? A linha da vida é assim tão curta? Saiba usted, mi Hidalgo, respondeu reservada, que habrá una lunga vida.
Diogo aproximava-se curioso. Ela entretanto murmurava umas palavras incompreensíveis e começou então a falar muito depressa, em cantilena há muito decorada, dando a clara ideia de que encobria um ror de coisas. Usted gusta mucho de las chicas y las chicas le gustan mucho de usted. Tíene usted un malo olhado de hace mucho tiempo, pero va le aparecer una persona que le va cambiar la vida. Miro en su mano un M que no le hace la vida negra. Usted tien acordado con enxaquecas y en su sina grabada en la palma de la mano está escrito que va usted a tenir mucha dita y mucha fortuna. Dice aun su sina que va conocer un E que le trará mucha felicídad y mucho cariño. Vea que le quieren enganar y en sus costas hablan mui malo de usted, usted ha sido hecho para vencerlos. Es mui alegre y holgazan y hade viajar mucho y conocer otras terras y pueblos. Andará sobre la mar pero las tempestades no le hande molestar. Hay una mujer mui hermosa y mui guapa y mui noble en su vida, pero usted jamás la conocerá. Hay mas mujeres en su camino... Usted estará sozinho y... Interrompeu-se a observar-me a mão com muita atenção. Estávamos suspensos eu e Diogo. No puedo..., decir más..., terminava ela. Linhas mui confusas... Un gran mistério en su vida, mi hidalgo. Tengo visto muchas manos pero jamás una como esta. La otra, por favor. Estendi-lhe a mão esquerda. Lá estava! Mano de hidalgo y las linhas del mistério... Deseo que usted sea mui feliz. Não o serei? Pero si, pero si ! Dei-lhe uma moeda e ela beijou-me a mão. Seguimos caminho». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

As Naus. António Lobo Antunes. «Da escada assistiam não apenas à chegada da noite que diluía as gaiolas e ressuscitava os cães mas à partida do bando de tágides de lamê que a mãe do indiano enxotava, pela erva da encosta abaixo…»

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«(…) De manhã, enquanto a mulata dormia anestesiada de anis, rosnando de quando em quando palavras de sanzala, eu procurava emprego nas redondezas a fim de satisfazer os juros dementes do gordo: oferecia-me de aprendiz no martelar satânico, de sangue nas têmporas, das oficinas de serralharia, ou de marçano nos talhos de Bácoros esventrados, de pestanas loiras de menina; tentava provar a capatazes de bóina aos quadrados que era tão dextro como os cabo-verdianos das obras a furar à picareta o alcatrão das ruas, ou convencer os inspectores sanitários, de bafo de lula doente, que governava melhor os urinóis municipais do que os reformados trôpegos que despejam cartuchinhos de soda cáustica em regos de pedra onde uma espuma leveda e borbulha. A pouco e pouco, com o garoto a trotar-lhe nos fundilhos, alargou a sua busca inútil a zonas mais distantes da cidade, perto do bairro da lepra onde as carroças da Câmara moíam os eixos todo o dia; propunha-se para desocupar as valas comuns dos cemitérios das cartilagens incómodas dos mortos; queria à viva força, de boné de pala nos olhos, guardar cachalotes de automóveis nos parques junto ao rio, patrulhado pelas escunas do reyno, a vê-los transformarem-se lentamente em corvetas; esquadrinhava os becos do Cais do Sodré, mendigando trabalho aos porteiros-valetes-de-espadas das boites de put…; almoçava bolos de arroz em leitarias solitárias com uma única mosca a teimar sobre o balcão; passava um chupa-chupa de tangerina ao miúdo e trepava aos miradoiros a impingir-se de guia para traduzir aos alemães o panorama de capoeiras humildes e de miséria tranquila de Lixboa e os gatos que lambiam o sol que lhes poisava na garupa; solicitava, quase de graça, o emprego de levar bofetadas dos mímicos do Coliseu à medida que os trapezistas rodopiavam a cintilar na cúpula, desprendendo nuvenzinhas virginais de talco; e acabava por tornar, desalentado, à Residencial, por roçar um beijo distraído na mulata que descia a colina coberta de escamas sumptuosas, por atravessar o vestíbulo onde o lumbago do senhor Francisco Xavier, padroeiro de Setúbal, gania como um metrónomo na cadeira de baloiço, e por se sentar finalmente nos degraus ao lado do navegador ébrio, que riscava no chão, com um pauzinho, a latitude provável das ilhas por achar.
Da escada assistiam não apenas à chegada da noite que diluía as gaiolas e ressuscitava os cães mas à partida do bando de tágides de lamê que a mãe do indiano enxotava, pela erva da encosta abaixo, na direcção das discotecas de Arroios, da fachada da Morgue e do lago de patos do Campo de Santana, deusas magras aos tropeços nos seixos e nas raízes da terra perseguidas pelos filhos de umbigo ao léu que as chamavam, que desistiam, que entravam na pensão como os cachorros regressam, derrotados, aos portões das quintas, e a minha esposa cambaleava entre elas no exagero dos saltos, estropiando sem remédio os sapatos doirados que o gordo me obrigava a pagar para aumentar a dívida e a manter eternamente ligada aos seus impiedosos compromissos de chulo, de forma que o meu débito crescia sem cessar com a força dos pêlos do nariz e das plantas sem nome dos telhados, até que o fiscal da Companhia das Águas me somou o dinheiro em atraso com os olhos de quem conta draga-minas no horizonte, Faz tanto, e me aconselhou, a mamar da aguardente da garrafa, A única solução é espetares uma faca na barriga desse preto que com o corpinho da tua patroa já comprou dois prédios na Morais Soares e o trespasse de uma mercearia na Penha de França, o camelo cada vez mais rico e eu reduzido aos meus cálculos de ilhas e aos meus diários inúteis num reyno onde os marinheiros se coçam, desempregados, nas mesas de bilhar, nos cinemas pornográficos e nas esplanadas dos cafés, à espera que o Infante escreva de Sagres e os mande à cata de arquipélagos inexistentes à deriva na desmedida do mar. Afastávamos a medo os reposteiros da sala e ele logo Descubram-me os Açores, e a gente descobria-os, Encontrem-me a Madeira, e a gente, que remédio, encontrava-a, Encalhem-me no Brasil e tragam-mo cá antes que um veneziano idiota o leve para Itália, e a gente trouxe-lhe ao Algarbe, onde ceava no meio de uma roda de physicos e bispos, esse monstro esquisito de carnavais, papagaios e cangaço, de tal jeito que ao vê-lo, assim estupidamente enorme, arrastado por dezassete galés e mil e quatrocentos pares de bois, isto sem contar as mulas e os escravos mouros, se apartou dos seus e nos perguntou baixinho, ca hera homem avisado e de bom entendimento, Para que quero eu tal coisa se já tenho chatices que me sobram?, de modo que nos ordenou que o puséssemos, durante a hora da sesta, onde o tínhamos achado, sem conservar um papagaio sequer, e nos esquecêssemos logo da pelagra e dos mortos que padecêramos para lho dar, e ao pajem que interrogou, apontando a janela, Senhor, que nação é?, respondeu sem hesitar, na sua voz rouca de almirante ancorado que era um banco de areia da baixa-mar, meu palerma que nem o litoral conheces, e com muita Ave-Maria e muito trabalho obedecemos ao que nos disse, ou seja puxar o Brasil de volta para a América e quem viesse depois que se tramasse com aquilo, só que não conseguimos conter os papagaios inverosímeis que voavam aos gritos nos largos de Lixboa na agitação colorida das toalhas de banho». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT

As Naus. António Lobo Antunes. «O primeiro amigo que fizeram na Residencial Apóstolo das Índias dormia três colchões adiante, chamava-se Diogo Cão, tinha trabalhado em Angola de fiscal da Companhia das Águas…»

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«(…) Depois do jantar, no quarto, o homem, debruçado da magnificência presidencial da janela a que apenas faltava uma colcha e um discurso, confrontou-se pela primeira vez com a noite fosca, de carvão de escape, de Lixboa, sob a forma de um parque a descer para uma praça redonda, e de árvores que se aglomeravam ou separavam de acordo com a atmosfera inexplicável dos sonhos, surpreendendo-se de não encontrar cubatas nem missões de noviças famélicas, e da ausência do odor de fémur bichoso da mandioca nas esteiras. O halo das lâmpadas da rua impedia-o de distinguir o céu onde os lagos palustres da Guiné transbordavam de peixes estranhos, guerrilheiros e caniços, ocultos pela neblina do cacimbo. Veio-lhe à cabeça a frase da esposa, Já não pertenço aqui, e pensou que na idade de elefantes deles, reformados, sem dinheiro, sem família, sem móveis, dependentes de uma pensãozita que não lhes entregariam mais, perdida nos escaninhos burocráticos ou nas gavetas do palácio dos pretos, em que mariposas e vespas se multiplicavam no interior dos armários e os fuzilados se afundavam nas dálias dos jardins, nada lhes sobejava para além de si próprios, da máquina de costura suturando o tempo, do cofre de embutidos que sei lá onde pára, olha que coisa, e do bom senso de morrer, de engolir a embalagem completa das pílulas calmantes que o médico dos fuzileiros lhe receitava contra a enxaqueca dos pesadelos, umas pastilhas que sabiam a cré e possuíam a virtude de despenhar uma pessoa nas águas sem limites do esquecimento completo. Preparava-se para perguntar à mulher Onde meteste a maçada do remédio que o não vejo, que é da gaita dos comprimidos da ausência total, quando a escutou de dentro a chamá-lo dos damascos absurdos, das sedas incríveis, das almofadas da avestruz e dos móveis sem preço riscados a canivete por hóspedes pretéritos, e a encontrou de pé, numa postura vitoriosa, apoiando a mão na máquina de costura ferrugenta, cercada por um emaranhado de fios, pedaços de colcha, fatias de reposteiro e sobras de cortina espalhadas ao acaso no soalho. Vestia uma blusa e uma saia vermelhas e brancas, idênticas às das restantes hóspedes, e um cinto em que se entrançavam, como nos truques dos ilusionistas, os aros de latão das janelas. O seu sorriso era pelo menos tão alegre, malicioso e jovem como na época da fotografia de casados e das primeiras horas de dificuldade e aflição no desassossego dos lençóis: convidaram-me para um churrasco de gato na casa de banho do andar de cima, disse ela a apontar o sapo de baquelite do telefone prestes a mover-se a custo ao comprido de um tampo de verniz. Queres vir?

O primeiro amigo que fizeram na Residencial Apóstolo das Índias dormia três colchões adiante, chamava-se Diogo Cão, tinha trabalhado em Angola de fiscal da Companhia das Águas, e quando à tarde, depois da mulata partir para o bar, se sentava comigo e com o miúdo nos degraus da pensão a ver nas ripas dos telhados o frenesim das rolas, anunciava-me, já de voz incerta, beberricando de um frasco oculto no forro do casaco, que há trezentos, ou quatrocentos, ou quinhentos anos comandara as naus do Infante pela Costa de África abaixo. Explicava-me a melhor forma de estrangular revoltas de marinheiros, salgar a carne e navegar à bolina e de como era difícil viver nesse árduo tempo de oitavas épicas e de deuses zangados, e eu fingia acreditá-lo para não contrariar a susceptibilidade das suas iras de bêbedo, até ao dia em que abriu a mala à minha frente e debaixo das camisas e dos coletes e das cuecas manchadas de vomitado e de borras de vinho, dei com bolorentos mapas antigos e um registo de bordo a desfazer-se». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Não, não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo resta para Nosso Senhor me chamar. Ainda bem que vieste. Desejava tanto aliviar a consciência, esta angústia que trago comigo»

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O galeão S. Mateus
«(…) Que fogoso cavalga o reizinho na montaria! Lida o cervo e o porco-montês como se já estivesse a combater o Mouro. Foste seu aio. Viste-o crescer nessa mania. Desde pequeno o tenho seguido no exercitar da espada, da lança, do estoque... Não admira tenha fortalecido mais todo o lado direito do corpo... Olhai! A matilha dos rafeiros, em latidos excitados, levantou duas feras do seu fojo de entre o canavial! Que corpulentas! Cuidado, Senhor! Está a rainha Catarina em seu leito deitada, cuidam-lhe as aias do aspecto. Ora graças a Deus!, diz a camareira-mor, aos pés da cama. Como Vossa Alteza está hoje bem melhor! Foi Nosso Senhor que a quis festejar neste dia catorze de Janeiro..., dia dos seus anos..., humedece-lhe uma açafata o rosto com água-de-rosas. Que linda está! De ontem para hoje rejuvenesceu dez anos.
Já a noite vem descendo e el-rei que não chega! Mandaram-lhe recado, como eu ordenei? Sim, Alteza. Logo de manhã. Não deve tardar. El-rei desembarca no cais do terreiro. Esperam-no cortesãos e fazem-lhe vénia. Tan hermoso deve estar el campo, Alteza, diz Juan Silva, enviado de Castela, que no pudiera dejar por menos causa que la indisposición de la reina. Ainda que fora isso, era já tempo de vir e de partir para África. Camareira, que passos são esses aí fora? El-rei que chega, Alteza. Retiram-se as aias, quando el-rei entra acompanhado do médico. A quentura desceu, vem informando o físico, a respiração tornou-se menos custosa, mas...
Senhora, abeira-se el-rei da avó, vim, mal me deram a notícia do vosso mal-estar. Mas Deus seja louvado, que vos venho encontrar com boa disposição no vosso aniversário. Ah, meu querido neto! Ainda me sinto muito fraca. Logo passará, vereis. E acrescentou: se assim o ordenardes, folgarei que se diga mandara Sua Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as verdades tocantes a seu serviço. Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a experiência e outras razões me mostravam e vencido agora do desvelo e autoridade de Fernando, disse-lhe enfim: ora vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade. E ordenei se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino. Honrosa resolução, em verdade, observou o arcebispo, com ar de dúvida, afagando um sobrolho crítico. Mas depois... Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti de meus planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para a grande jornada. Meu tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe conta da empresa e rogar-lhe que a aprovasse, embora com brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser regente durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês antes de falecer..., estava eu em Salvaterra, era Janeiro de setenta e oito, uma terça-feira, dia catorze... vieram-me dizer que ela...
Não, não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo resta para Nosso Senhor me chamar. Ainda bem que vieste. Desejava tanto aliviar a consciência, esta angústia que trago comigo, que me tira o sono e me não estanca as lágrimas... Vá, senhora, vá, disse el-rei, compreendendo-lhe o alcance. Acalmai. Já falámos muitas vezes desse assunto e eu... Com incontido vigor e determinação a rainha ripostou: pois é forçoso e urgente uma última vez ouvires o que tens evitado escutar... Que gesto de enfado esboçou el-rei!, pensou a camareira. Eu sei que contrario o teu pendor, continua dona Catarina. És muito novo e essa tua tenção de ganhar honra por teu próprio braço seria bem de louvar, não fosse estorvarem-no razões ponderosas. É a empresa honrosa? Não se duvida. Mas o tempo não é o disposto nem convinhável. És rei, és responsável por estes reinos e impérios e ainda não asseguraste descendência nem sucessor. Três pontos por que as leis divinas e humanas desaconselham de saíres de tua casa a fazer, em terras estranhas e sem seres provocado, guerra duvidosa...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

As Naus. António Lobo Antunes. «Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos capaz de sobreviver séculos…»

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«(…) Uma banheira pontifícia ocupava a sacristia de azulejos do compartimento vizinho, ao lado da escultura de uma sanita de Henry Moore só para eles, nós que em África partilhávamos a nossa intimidade com a intimidade dos restantes hóspedes, contendo a flora do intestino à espera do autoclismo de quem se nos antecipara na urgência das necessidades. Para lá das cortinas vermelhas e brancas percebiam-se os edifícios de Lixboa, flechas de igreja, os quarteirões isolados da peste, jardinzinhos exíguos e o céu, liberto das nuvens de tempestade da Guiné, em que subiam e desciam santos de túnica e mãos postas que o sol doirava de uma poeira de talha. O velho deixou a fotografia de casamento numa cómoda ducal sem se atrever a confrontar a noiva do retrato, de corpete de barbas de baleia, com a septuagenária de cabelo sem viço de que conhecia os tiques e os gestos até à quase absoluta inutilidade das palavras. E no entanto, amolecido numa almofada de toucador cujos espelhos o reproduziam numa repetitiva náusea intolerável, palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento que se decompunha de aguardente e de sífilis numa guarnição de fronteira. Agora o casal do retrato tornara-se numa aguarela de iodo e nós em múmias sem préstimo espantadas diante das dezenas de garrafinhas do bar do apartamento, expostas em prateleiras de mogno na imobilidade inquietante das peças de xadrez. Ao escurecer entraram a medo na nave de mosteiro de Alcobaça da sala de jantar enfarpelados com a roupa que escondemos, no decurso da viagem, numa maleta de linha: a minha mulher com o vestido pré-histórico do seu antigo emprego de caixeira numa loja de fivelas, e eu com o fato de bandas largas, à Al Capone ou à dançarino de tango, estreado no baptizado da nossa filha juntamente com a gravatinha ridícula, do diâmetro de um atacador, que procurava inutilmente unir as metades de um colarinho sem botão.
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos capaz de sobreviver séculos, sem um gesto, nas margens dos rios mais inclementes, e um faquir goês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas, a aperfeiçoar bolas de pão nos espargos dos dedos. Ao servirem a sopa um gordo de laçarote subiu o tamborete de um piano eléctrico, puxou os punhos com os anéis dos dedos e acompanhou a canja a semifusas. Escudeiros de travessa na palma bailavam nos intervalos dos aparadores. Os alões de caça do infante João devoravam lebres pelos cantos. E o marido deu consigo a reparar, espadeirando contra o caldo, que quase todas as senhoras traziam cintos ou mantilhas ou saias vermelhas e brancas onde se reiterava o estampado das cortinas. Nalgumas dependuravam-se ainda as argolas de lata dos reposteiros tilintando os seus sininhos sem júbilo, e que as raparigas mais novas, pegas da tropa, desaforadas filhas de chefe de posto ou alunas de colégio de freiras que os motoristas dos conventos transviaram, usavam perfurando-lhes o lábio ou o septo do nariz, como quando as conheci nadando em redor dos veleiros num alarido de pasmo. Quase no fim da salada de frutas de conserva sul-africana que os pára-quedistas desmobilizados deixaram a fermentar nos armazéns da Manutenção de Lixboa sob peças de fardamento, cruzes de guerra e catapultas, um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minúcia de ourives, atravessou as tapeçarias de hibiscos a fazerem o pino e de alicornes monstruosos da sala cumprimentando aqui e ali, recomendando detalhes aos criados, e após conversar um momento com o artista das colcheias, que se abanava com um lenço afectado, adaptou o microfone à sua altura, soprou-lhe um hálito disforme, disse Um dois três experiência, batucou com o indicador numa saraivada de pedras, segredou ao pianista do laçarote que se desfez que sim e suspendeu as mãos sobre o teclado num acorde militar, e então uma voz divina, imensa, autoritária, nascida não só das madeixas complicadas do tenente mas de todos os pontos da sala, das cantoneiras, dos jarros de florinhas, das pipetas de remédio sobre as toalhas e dos beiços dos animais fantásticos bordados na trança dos muros, uma voz de garagem ou de despenhadeiro do tamanho dos bombardeamentos e dos temporais de Bissau, informou com ferocidade, damas e cavalheiros, informou com pompa, senhoras e senhores, que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático, nascido, com a ajuda da parteira mão castrense, do ventre putrefacto do totalitarismo fascista que durante tantos decénios nos garroteou e oprimiu, conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca, a decepação da mão esquerda, a extracção de vísceras pelas costas ou o degredo em Macau, os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, engasgar os ralos com tornozelos de faisão, cozinhar refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, concebidas por arquitectos franceses, nos antiquários caquéticos da Rua de São Bento, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel, repito, servir-se das cortinas estampadas do hotel para blusas e adornos, tenho dito, de barregã de moiro». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Persisti em minha disposição. Respondeu-me, foram estas as suas textuais palavras: em nenhuma maneira hei-de ir nem eu nem as galés sem levar Vossa Alteza…»

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O galeão S. Mateus
«(…) Há vinte anos, disse o desconhecido e precisou: vão cair vinte anos no dia quatro de Agosto próximo. Então, perguntou o arcebispo, porque é que só agora...? Contar-vos-ei tudo como se passou. Mas sentemo-nos, tornou o prelado, entre curioso e duvidoso, e indicava uma cadeira ao peregrino. Sentaram-se os três e o estrangeiro começou: estou a morar aqui em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori. Alguns portugueses emigrados na cidade vieram até mim e logo se prontificaram a ajudar-me. Foram eles que me aconselharam a procurar-vos. E em que poderei eu...? Acreditaram em mim, depois de me ouvirem, que eu sou quem sou... E sentiram piedade. E sentirem piedade feriu o meu orgulho e por fim abateu-o. Orgulho ainda, ao cabo de vinte anos? Vede, arcebispo, como ainda não estou limpo de minhas misérias e prosápias. Pensei que ia ouvir a história de um orgulho abatido. Avaliareis a que ponto eu era orgulhoso e desatinado. Porque não segui eu, antes de partir para África, os conselhos dos mais velhos e assisados? Não era esta a pergunta dos que verdadeiramente queriam o bem do reino? Que arrogante e insensato fui! Fernando Álvares Noronha, general das galés, mandei-o ir esperar-me com elas em Cascais. Bem se arreceou ele de que eu intentava ir cometer pelo mar alguma travessura contra os corsários. Era isto em quinhentos e setenta e quatro. Não presumiu que eu chegasse ao excesso de, sem que ninguém esperasse, passar a África. Quando me viu resolvido a executá-lo, teve-o por desvario. Fidalgo velho e experimentado, contrariou-o quanto pôde. Sem proveito. Tão determinado em meu apetite e fogo da mocidade, com as louvaminhas dos aduladores, não atendia às oposições dos prudentes e zelosos. Em Tânger despedi-o para o reino com as galés, no propósito de lá ficar esperando por força de gente com que fizesse guerra aos Mouros. Repugnou ele o projecto, com fundamentos sólidos. Lembrava-me o perigo de descrédito de minha pessoa real.
Persisti em minha disposição. Respondeu-me, foram estas as suas textuais palavras: em nenhuma maneira hei-de ir nem eu nem as galés sem levar Vossa Alteza, ainda que me mandeis cortar a cabeça. Sofrê-lo-ei melhor do que desamparar-vos. E acrescentou: se assim o ordenardes, folgarei que se diga mandara Sua Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as verdades tocantes a seu serviço. Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a experiência e outras razões me mostravam e vencido agora do desvelo e autoridade de Fernando, disse-lhe enfim: ora vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade. E ordenei se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino. Honrosa resolução, em verdade, observou o arcebispo, com ar de dúvida, afagando um sobrolho crítico. Mas depois... Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti de meus planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para a grande jornada. Meu tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe conta da empresa e rogar-lhe que a aprovasse, embora com brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser regente durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês antes de falecer..., estava eu em Salvaterra, era Janeiro de setenta e oito, uma terça-feira, dia catorze..., vieram-me dizer que ela...
Já os podengos as filham pelas pernas, aferram-lhes as cerdas do cachaço em rosnidos furiosos. Soa o olifante e a algazarra ecoa pela lezíria alvoroçada. Acorrem os monteiros e procuram conter um dos bichos que forceja por fugir. El-rei avança em seu cavalo baio, sangra-o com a forquilha pelos narizes rugidores e obriga-o a descair de lado. Apeia-se, saca do punhal e afunda-lhe o aço nos peitos até ao coração. Num sufoco de sangue esmorecem os roncos da besta, que esperneia... Os cães perseguem o outro javardo, que foge lá longe. Das bandas de Lisboa vem chegando um cavaleiro. Ata a montada ao tronco de um pinheiro e saúda el-rei numa vénia. - Que há? Senhor, agravou-se a doença da rainha. Que cavalgada é essa que levanta a poeira dos caminhos? Aquele jovem loiro e formoso que ali vai com os seus à desfilada não é outro senão el-rei. Bem o reconheço. Ai, mulher! Que azadinho! Dizem que não quer casar..., el-rei e sua comitiva, que correm de Salvaterra para Lisboa...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1
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Cortesia de Difel/JDACT

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa. Estes bichinhos sabem quem é deles amigo…»

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O galeão S. Mateus
«Flutuava sobre a laguna o vazio e o nada, cerrara-se uma espessura de bruma que o sol da manhã nascente, sem a conseguir romper, mal dourava de um rubor genesíaco. Na humidade viscosa, cortada por manso respiro de asas e pios de gaivotas, entranhara-se o fedor que a maré vaza destilava das cloacas da cidade invisível. Grande Canal, vem da cerração uma voz. Estamos a chegar. Como fantasma a proa da gôndola surge das entranhas do nevoeiro e logo a embarcação acosta ao cais. O homem apeou-se: arrivederci, buon uomo.
Que palidez!, pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos no escuro do capuz! A barba a grisalhar antes do tempo, os dedos brancos da mão, como de cadáver mas bem cuidados, aferrados ao bordão, a outra a acenar leve adeus... É prà i algum grande senhor, apesar do burel e do desalinho... Arrivederci, Eccellenza. Vê afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa de romeiro, ouve-lhe o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura cinzenta em direcção a São Marcos.
Sente um arrepio: uma alma do outro mundo! Persigna-se e abala dali. Num canto da piazza o homem bateu a uma porta. Um criado vem abrir. Sua Eminência, o arcebispo de Espálato? Quem devo anunciar? Um peregrino acabado de chegar da Terra Santa. Português. Desejo falar a Sua Eminência. Matéria da máxima importância. O criado foi dentro e não tardou a reaparecer: Sua Eminência aguarda-vos. Um átrio lajeado de mármores, paredes ornadas de retratos a óleo de prelados de ar estático, cadeirões encourados, pregueados de cobre, em nichos dourados imagens de santos, peanhas com estátuas de deuses pagãos, um busto do imperador Diocleciano, ao fundo escadaria sumptuosa. Por aqui, senhor, disse o mordomo, começando a subir. O arcebispo estava sentado à secretária. Debaixo, enrolado a seus pés, um dálmata levantou o focinho e as pintas negras rosnaram. Calado, Split!
Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa. Estes bichinhos sabem quem é deles amigo, sorriu o prelado. Que me quereis falar... Era um homem magro e seco, as pontas dos cabelos a fazerem coroa em roda do solidéu, a barba encanecida, pontiaguda. O tamanho do tronco inculcava ser alto. Deus vos cubra de graças por me terdes recebido, Eminência. A seu lado, de pé, um cónego de sotaina preta à entrada do peregrino suspendera o gesto de apresentar ao superior alguns papéis. ... peregrino..., português..., mirava-o o prelado. Vindes da Terra Santa?
Sua Eminência o arcebispo de Espálato tem na sua frente o homem mais desgraçado que jamais se viu. Remirou-o o arcebispo, a magreza na estatura alçada, na barba rala o loiro riscado de fios de prata, a postura mal ocultando na capa de romeiro traços de altivez... Falai, disse. Ouvistes certamente contar daquele grande destroço que foi para a cristandade a batalha do rei de Portugal contra os Mouros? Quem não ouviu? Deu brado em todo o mundo. Alcácer Quibir, lembrou o cónego. Grande descalabro, sim, continuou o arcebispo. O exército cristão destroçado, o rei morto... O rei não morreu. Que dizeis? O rei não morreu?, repetia o cónego abismado. Como o podeis afirmar, se Filipe de Espanha o sepultou com solenes exéquias em Lisboa? O rei está vivo. Sou a única pessoa neste mundo que o pode testemunhar. Como assim?
Todos estes anos, desde aquele fatal fim de tarde, nunca dele me apartei. As suas angústias foram as minhas angústias, as suas dores, as minhas dores..., suspendeu-se, a garganta embargada, os olhos aguados, depois continuou: a sua humilhação, a minha humilhação... Mas vós viestes sozinho. Onde está o rei? O rei e eu... Este homem é louco!, exclamou o cónego. O arcebispo levantou-se, estendeu a mão ao acólito a suster-lhe a fala: estais a querer dizer-me... Sim, Eminência. O arcebispo deu alguns passos na sala com ar concentrado. Parou em frente do estrangeiro e disse: uma enormidade! Como o poderíeis provar? É um louco!, repetia o cónego. Rei sem coroa, sem ceptro, sem anel..., e sem reino, podeis acrescentar, tornou o peregrino com triste dignidade mas um lampejo de majestade no olhar e na voz. E, como o arcebispo hesitasse em falar, continuou: compreendo a vossa perplexidade e descrença. Um rei não aparece assim, caído do nada, vestido de peregrino, em casa de um arcebispo longínquo..., e essa batalha foi já há muito tempo, lembrava o cónego». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1
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