Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Pouco antes do
amanhecer, despertei com a vaga sensação de ter sonhado com a voz presa no gramofone.
Do outro lado da minha janela, Barcelona se iluminava numa tela de sombras escarlates,
sobre um bosque de antenas e terraços. Pulei da cama e procurei o maldito
relógio que tinha assombrado a minha existência nos últimos dias. Ficámos encarando-nos
por um instante. Finalmente, me armei daquele tipo de determinação que só
aparece quando temos de enfrentar tarefas absurdas e resolvi acabar de vez com
aquela história. Ia devolvê-lo.
Tratei de me vestir em silêncio e
atravessei o corredor escuro do quarto andar na ponta dos pés. Ninguém notaria a
minha ausência até as dez, onze da manhã. E a essa hora eu já devia estar de volta.
Lá fora as ruas estendiam-se sob aquele manto púrpura que envolve o amanhecer
em Barcelona. Desci até à calle Margenat. Sarriá despertava ao meu redor.
Nuvens baixas penteavam o bairro capturando as primeiras luzes do dia num halo dourado.
As fachadas das casas se desenhavam entre os vestígios de neblina e as folhas
secas que voavam sem rumo. Não demorei a encontrar a rua. Parei um instante
para absorver aquele silêncio, aquela estranha paz que reinava naquele canto perdido
da cidade. Começava a sentir que o mundo tinha parado junto com o relógio que
estava no meu bolso, quando ouvi um rumor às minhas costas. Virei e deparei-me
com uma visão que parecia roubada de um sonho.
Uma bicicleta
emergia lentamente da bruma. Uma menina usando um vestido branco descia a
encosta pedalando na minha direcção. Na contraluz do amanhecer, eu podia
adivinhar a silhueta de seu corpo através do algodão. Uma longa cabeleira cor de
feno ondeava escondendo o rosto. Fiquei ali, imóvel, contemplando-a enquanto se
aproximava, como um imbecil com ataque de paralisia. A bicicleta parou a uns 2
metros de mim. Os meus olhos, ou talvez a minha imaginação, adivinharam o contorno
de pernas esguias tentando alcançar o chão. Meu olhar subiu por aquele vestido que
parecia saído de um quadro de Sorolla e foi parar num par de olhos de um cinza
tão profundo que alguém poderia cair lá dentro. Estavam cravados em mim com
olhar sarcástico. Sorri e ofereci a minha melhor cara de idiota. V deve ser o sujeito
do relógio, disse a menina num tom que combinava com a força do seu olhar. Calculei
que devia ter a minha idade, talvez um ano a mais. Adivinhar a idade de uma
mulher era, para mim, uma arte ou uma ciência, nunca um passatempo. A sua pele
era tão pálida quanto o vestido. V mora aqui?, gaguejei, indicando o portão.
Ela mal piscou. Aqueles dois olhos
me perfuravam com tanta fúria que precisei de mais duas horas para me dar conta
de que, no que me dizia respeito, aquela era a criatura mais deslumbrante que
eu tinha visto na vida ou que esperava ver um dia. E ponto final. F. quem é você
para perguntar? Acho que eu sou o sujeito do relógio, improvisei. Meu nome é Óscar.
Óscar Drai. Vim devolver. Sem lhe dar tempo para responder, tirei o relógio do bolso
e estendi a mão. A menina sustentou o meu olhar por alguns segundos antes de
pegá-lo. Quando fez isso, vi que a sua mão era tão branca quanto a de um boneco
de neve e que exibia um aro dourado no dedo anelar.
Já estava quebrado quando o peguei,
expliquei. Está quebrado há 15 anos, murmurou sem olhar para mim. Quando afinal
levantou os olhos, foi para me examinar de cima a baixo, como quem avalia um móvel
velho ou um traste qualquer. Algo nos seus olhos me disse que não dava muito crédito
à minha qualificação como ladrão: provavelmente estava-me catalogando na secção
dos cretinos ou simplesmente bobos. A cara de lunático que eu exibia não ajudava
muito. A menina levantou uma sobrancelha ao mesmo tempo que sorria
enigmaticamente e me estendia o relógio de volta. Foi você quem pegou, é você quem
vai devolver ao legítimo dono. Mas... O relógio não é meu,
esclareceu a menina. É de Germán».
In
Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
Cortesia de PlanetaE/JDACT