quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Uma bicicleta emergia lentamente da bruma. Uma menina usando um vestido branco descia a encosta pedalando na minha direcção. Na contraluz do amanhecer…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pouco antes do amanhecer, despertei com a vaga sensação de ter sonhado com a voz presa no gramofone. Do outro lado da minha janela, Barcelona se iluminava numa tela de sombras escarlates, sobre um bosque de antenas e terraços. Pulei da cama e procurei o maldito relógio que tinha assombrado a minha existência nos últimos dias. Ficámos encarando-nos por um instante. Finalmente, me armei daquele tipo de determinação que só aparece quando temos de enfrentar tarefas absurdas e resolvi acabar de vez com aquela história. Ia devolvê-lo.
Tratei de me vestir em silêncio e atravessei o corredor escuro do quarto andar na ponta dos pés. Ninguém notaria a minha ausência até as dez, onze da manhã. E a essa hora eu já devia estar de volta. Lá fora as ruas estendiam-se sob aquele manto púrpura que envolve o amanhecer em Barcelona. Desci até à calle Margenat. Sarriá despertava ao meu redor. Nuvens baixas penteavam o bairro capturando as primeiras luzes do dia num halo dourado. As fachadas das casas se desenhavam entre os vestígios de neblina e as folhas secas que voavam sem rumo. Não demorei a encontrar a rua. Parei um instante para absorver aquele silêncio, aquela estranha paz que reinava naquele canto perdido da cidade. Começava a sentir que o mundo tinha parado junto com o relógio que estava no meu bolso, quando ouvi um rumor às minhas costas. Virei e deparei-me com uma visão que parecia roubada de um sonho.

Uma bicicleta emergia lentamente da bruma. Uma menina usando um vestido branco descia a encosta pedalando na minha direcção. Na contraluz do amanhecer, eu podia adivinhar a silhueta de seu corpo através do algodão. Uma longa cabeleira cor de feno ondeava escondendo o rosto. Fiquei ali, imóvel, contemplando-a enquanto se aproximava, como um imbecil com ataque de paralisia. A bicicleta parou a uns 2 metros de mim. Os meus olhos, ou talvez a minha imaginação, adivinharam o contorno de pernas esguias tentando alcançar o chão. Meu olhar subiu por aquele vestido que parecia saído de um quadro de Sorolla e foi parar num par de olhos de um cinza tão profundo que alguém poderia cair lá dentro. Estavam cravados em mim com olhar sarcástico. Sorri e ofereci a minha melhor cara de idiota. V deve ser o sujeito do relógio, disse a menina num tom que combinava com a força do seu olhar. Calculei que devia ter a minha idade, talvez um ano a mais. Adivinhar a idade de uma mulher era, para mim, uma arte ou uma ciência, nunca um passatempo. A sua pele era tão pálida quanto o vestido. V mora aqui?, gaguejei, indicando o portão.
Ela mal piscou. Aqueles dois olhos me perfuravam com tanta fúria que precisei de mais duas horas para me dar conta de que, no que me dizia respeito, aquela era a criatura mais deslumbrante que eu tinha visto na vida ou que esperava ver um dia. E ponto final. F. quem é você para perguntar? Acho que eu sou o sujeito do relógio, improvisei. Meu nome é Óscar. Óscar Drai. Vim devolver. Sem lhe dar tempo para responder, tirei o relógio do bolso e estendi a mão. A menina sustentou o meu olhar por alguns segundos antes de pegá-lo. Quando fez isso, vi que a sua mão era tão branca quanto a de um boneco de neve e que exibia um aro dourado no dedo anelar.
Já estava quebrado quando o peguei, expliquei. Está quebrado há 15 anos, murmurou sem olhar para mim. Quando afinal levantou os olhos, foi para me examinar de cima a baixo, como quem avalia um móvel velho ou um traste qualquer. Algo nos seus olhos me disse que não dava muito crédito à minha qualificação como ladrão: provavelmente estava-me catalogando na secção dos cretinos ou simplesmente bobos. A cara de lunático que eu exibia não ajudava muito. A menina levantou uma sobrancelha ao mesmo tempo que sorria enigmaticamente e me estendia o relógio de volta. Foi você quem pegou, é você quem vai devolver ao legítimo dono. Mas... O relógio não é meu,
esclareceu a menina. É de Germán». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT