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O
galeão S. Mateus
«Flutuava
sobre a laguna o vazio e o nada, cerrara-se uma espessura de bruma que o sol da
manhã nascente, sem a conseguir romper, mal dourava de um rubor genesíaco. Na humidade
viscosa, cortada por manso respiro de asas e pios de gaivotas, entranhara-se o
fedor que a maré vaza destilava das cloacas da cidade invisível. Grande Canal,
vem da cerração uma voz. Estamos a chegar. Como fantasma a proa da gôndola
surge das entranhas do nevoeiro e logo a embarcação acosta ao cais. O homem
apeou-se: arrivederci, buon uomo.
Que
palidez!, pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos no escuro do capuz!
A barba a grisalhar antes do tempo, os dedos brancos da mão, como de cadáver
mas bem cuidados, aferrados ao bordão, a outra a acenar leve adeus... É prà i algum
grande senhor, apesar do burel e do desalinho... Arrivederci, Eccellenza. Vê
afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa de romeiro, ouve-lhe
o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura cinzenta em direcção a São
Marcos.
Sente
um arrepio: uma alma do outro mundo! Persigna-se e abala dali. Num canto da
piazza o homem bateu a uma porta. Um criado vem abrir. Sua Eminência, o
arcebispo de Espálato? Quem devo anunciar? Um peregrino acabado de chegar da
Terra Santa. Português. Desejo falar a Sua Eminência. Matéria da máxima
importância. O criado foi dentro e não tardou a reaparecer: Sua Eminência aguarda-vos.
Um átrio lajeado de mármores, paredes ornadas de retratos a óleo de prelados de
ar estático, cadeirões encourados, pregueados de cobre, em nichos dourados
imagens de santos, peanhas com estátuas de deuses pagãos, um busto do imperador
Diocleciano, ao fundo escadaria sumptuosa. Por aqui, senhor, disse o mordomo,
começando a subir. O arcebispo estava sentado à secretária. Debaixo, enrolado a
seus pés, um dálmata levantou o focinho e as pintas negras rosnaram. Calado,
Split!
Mas
o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do desconhecido, que, como
habituado, lhe fez uma festa. Estes bichinhos sabem quem é deles amigo, sorriu
o prelado. Que me quereis falar... Era um homem magro e seco, as pontas dos
cabelos a fazerem coroa em roda do solidéu, a barba encanecida, pontiaguda. O tamanho
do tronco inculcava ser alto. Deus vos cubra de graças por me terdes recebido,
Eminência. A seu lado, de pé, um cónego de sotaina preta à entrada do peregrino
suspendera o gesto de apresentar ao superior alguns papéis. ... peregrino...,
português..., mirava-o o prelado. Vindes da Terra Santa?
Sua
Eminência o arcebispo de Espálato tem na sua frente o homem mais desgraçado que
jamais se viu. Remirou-o o arcebispo, a magreza na estatura alçada, na barba rala
o loiro riscado de fios de prata, a postura mal ocultando na capa de romeiro
traços de altivez... Falai, disse. Ouvistes certamente contar daquele grande
destroço que foi para a cristandade a batalha do rei de Portugal contra os Mouros?
Quem não ouviu? Deu brado em todo o mundo. Alcácer Quibir, lembrou o cónego. Grande
descalabro, sim, continuou o arcebispo. O exército cristão destroçado, o rei
morto... O rei não morreu. Que dizeis? O rei não morreu?, repetia o cónego
abismado. Como o podeis afirmar, se Filipe de Espanha o sepultou com solenes
exéquias em Lisboa? O rei está vivo. Sou a única pessoa neste mundo que o pode testemunhar.
Como assim?
Todos
estes anos, desde aquele fatal fim de tarde, nunca dele me apartei. As suas
angústias foram as minhas angústias, as suas dores, as minhas dores...,
suspendeu-se, a garganta embargada, os olhos aguados, depois continuou: a sua humilhação,
a minha humilhação... Mas vós viestes sozinho. Onde está o rei? O rei e eu... Este
homem é louco!, exclamou o cónego. O arcebispo levantou-se, estendeu a mão ao
acólito a suster-lhe a fala: estais a querer dizer-me... Sim, Eminência. O
arcebispo deu alguns passos na sala com ar concentrado. Parou em frente do
estrangeiro e disse: uma enormidade! Como o poderíeis provar? É um louco!, repetia
o cónego. Rei sem coroa, sem ceptro, sem anel..., e sem reino, podeis
acrescentar, tornou o peregrino com triste dignidade mas um lampejo de
majestade no olhar e na voz. E, como o arcebispo hesitasse em falar, continuou:
compreendo a vossa perplexidade e descrença. Um rei não aparece assim, caído do
nada, vestido de peregrino, em casa de um arcebispo longínquo..., e essa
batalha foi já há muito tempo, lembrava o cónego». In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1
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