jdact
(…) Ao olhá-la, senti-me perturbado e
num estado de grande excitação. Apeteceu-me metê-la no meu conto, ou em
qualquer parte, mas a rapariga colocara-se de maneira a poder observar a rua e
a entrada do café. Percebi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a
escrever. O conto ia-se escrevendo por si próprio e eu via-me aflito para o acompanhar.
Mandei vir outro rum e ia observando a rapariga sempre que levantava os olhos ou
que aparava o lápis com um apara-lápis, enquanto as aparas de madeira se iam
encaracolando no pires que tinha debaixo do cálice. Eu vi-te, ó formosura, e tu
agora pertences-me embora estejas à espera de alguém e eu não torne, possivelmente,
a ver-te em toda a minha vida, pensei. Pertences-me e toda a cidade de Paris me
pertence como eu pertenço a este caderno e a este lápis. Depois, enfronhei-me
mais uma vez no que estava a escrever. Avancei pela história dentro, acabando
por me perder nela. Agora era eu que escrevia e não o conto que se escrevia a
si próprio, de forma que não tornei a levantar a cabeça.
Esqueci-me
do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir mais rum St. James. Fartara-me dele
embora nem sequer nele pensasse. Por fim, acabei o conto. Sentia-me cansadíssimo.
Li o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da rapariga, já ela
havia saído. Oxalá tenha ido com um homem decente, pensei. Mas senti-me triste.
Fechei
o caderno: meti-o na algibeira de dentro e pedi ao criado uma dúzia de portugaises e meia garrafa de
vinho branco, seco, da casa. Depois de escrever uma história, sentia-me sempre
vazio e simultaneamente triste e feliz como se tivesse acabado de me entregar
ao amor físico e ficava, nessa altura, com a certeza de que escrevera uma história
muito boa, embora não soubesse ao certo qual o seu verdadeiro valor senão
quando, no dia seguinte, a lia de ponta a ponta. Comi as ostras, que possuíam
um forte sabor a água do mar e um leve travo metálico que o vinho branco e
fresco ia neutralizando para lhes deixar somente o gosto próprio da sua massa
suculenta, e, à medida que ia bebendo o líquido frio de cada concha e o fazia
descer com o vinho fresco e bem apaladado, ia deixando de sentir a tal impressão
de vazio. Comecei a sentir-me feliz e a fazer planos.
Nessa
altura, que o mau tempo chegara, poderíamos deixar Paris por uns tempos e irmos
para qualquer sítio onde, em vez de chuva, houvesse neve a descer por entre
pinheiros e a cobrir as estradas e as encostas das altas montanhas, a uma
altitude a que a sentíssemos ranger quando à noite regressássemos a casa.
Abaixo de Les Avants havia
um chalet, onde a pensão
era esplêndida e onde poderíamos estar juntos, ter os nossos livros e
sentirmo-nos quentes à noite, bem juntos, na cama, com as janelas abertas e as
estrelas luzindo no céu. Eis para onde iríamos. As viagens de comboio em
terceira classe não eram caras. Com a pensão, pouco mais gastaríamos do que em
Paris. Deixaria o quarto de hotel onde escrevia e ficaria apenas com a renda do
n.° 74 da Rue Cardinal Lemoire, que
era nominal. Escrevera umas coisas para um jornal de Toronto e já havia
recebido os cheques respeitantes ao meu trabalho. E artigos de jornal era coisa
que eu poderia escrever em qualquer parte e em quaisquer circunstâncias e,
assim, dispúnhamos de dinheiro para a viagem. Talvez longe de Paris eu pudesse
escrever coisas a respeito de Paris, como em Paris conseguia escrever acerca do
Michigan. Nessa altura, ignorava que era cedo de mais para isso, pois ainda não
conhecia Paris suficientemente bem. Mas eventualmente era assim que as coisas
se passavam. De qualquer maneira, iríamos se a minha mulher tivesse vontade de
ir. Acabei as ostras e o vinho; paguei a conta e regressei pelo caminho mais
curto, pela Montagne Sainte Généviève,
debaixo de chuva, a qual nesse tempo era simples estado de tempo local e
não algo susceptível de transformar a nossa vida, à nossa casa do cimo da
colina». In Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, 1960, Edição
Livros do Brasil, Lisboa, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-145-165-540-7.
Cortesia
de ELdoBrasil/CDMundos/JDACT