quarta-feira, 25 de setembro de 2019

As Naus. António Lobo Antunes. «Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos capaz de sobreviver séculos…»

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«(…) Uma banheira pontifícia ocupava a sacristia de azulejos do compartimento vizinho, ao lado da escultura de uma sanita de Henry Moore só para eles, nós que em África partilhávamos a nossa intimidade com a intimidade dos restantes hóspedes, contendo a flora do intestino à espera do autoclismo de quem se nos antecipara na urgência das necessidades. Para lá das cortinas vermelhas e brancas percebiam-se os edifícios de Lixboa, flechas de igreja, os quarteirões isolados da peste, jardinzinhos exíguos e o céu, liberto das nuvens de tempestade da Guiné, em que subiam e desciam santos de túnica e mãos postas que o sol doirava de uma poeira de talha. O velho deixou a fotografia de casamento numa cómoda ducal sem se atrever a confrontar a noiva do retrato, de corpete de barbas de baleia, com a septuagenária de cabelo sem viço de que conhecia os tiques e os gestos até à quase absoluta inutilidade das palavras. E no entanto, amolecido numa almofada de toucador cujos espelhos o reproduziam numa repetitiva náusea intolerável, palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento que se decompunha de aguardente e de sífilis numa guarnição de fronteira. Agora o casal do retrato tornara-se numa aguarela de iodo e nós em múmias sem préstimo espantadas diante das dezenas de garrafinhas do bar do apartamento, expostas em prateleiras de mogno na imobilidade inquietante das peças de xadrez. Ao escurecer entraram a medo na nave de mosteiro de Alcobaça da sala de jantar enfarpelados com a roupa que escondemos, no decurso da viagem, numa maleta de linha: a minha mulher com o vestido pré-histórico do seu antigo emprego de caixeira numa loja de fivelas, e eu com o fato de bandas largas, à Al Capone ou à dançarino de tango, estreado no baptizado da nossa filha juntamente com a gravatinha ridícula, do diâmetro de um atacador, que procurava inutilmente unir as metades de um colarinho sem botão.
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos capaz de sobreviver séculos, sem um gesto, nas margens dos rios mais inclementes, e um faquir goês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas, a aperfeiçoar bolas de pão nos espargos dos dedos. Ao servirem a sopa um gordo de laçarote subiu o tamborete de um piano eléctrico, puxou os punhos com os anéis dos dedos e acompanhou a canja a semifusas. Escudeiros de travessa na palma bailavam nos intervalos dos aparadores. Os alões de caça do infante João devoravam lebres pelos cantos. E o marido deu consigo a reparar, espadeirando contra o caldo, que quase todas as senhoras traziam cintos ou mantilhas ou saias vermelhas e brancas onde se reiterava o estampado das cortinas. Nalgumas dependuravam-se ainda as argolas de lata dos reposteiros tilintando os seus sininhos sem júbilo, e que as raparigas mais novas, pegas da tropa, desaforadas filhas de chefe de posto ou alunas de colégio de freiras que os motoristas dos conventos transviaram, usavam perfurando-lhes o lábio ou o septo do nariz, como quando as conheci nadando em redor dos veleiros num alarido de pasmo. Quase no fim da salada de frutas de conserva sul-africana que os pára-quedistas desmobilizados deixaram a fermentar nos armazéns da Manutenção de Lixboa sob peças de fardamento, cruzes de guerra e catapultas, um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minúcia de ourives, atravessou as tapeçarias de hibiscos a fazerem o pino e de alicornes monstruosos da sala cumprimentando aqui e ali, recomendando detalhes aos criados, e após conversar um momento com o artista das colcheias, que se abanava com um lenço afectado, adaptou o microfone à sua altura, soprou-lhe um hálito disforme, disse Um dois três experiência, batucou com o indicador numa saraivada de pedras, segredou ao pianista do laçarote que se desfez que sim e suspendeu as mãos sobre o teclado num acorde militar, e então uma voz divina, imensa, autoritária, nascida não só das madeixas complicadas do tenente mas de todos os pontos da sala, das cantoneiras, dos jarros de florinhas, das pipetas de remédio sobre as toalhas e dos beiços dos animais fantásticos bordados na trança dos muros, uma voz de garagem ou de despenhadeiro do tamanho dos bombardeamentos e dos temporais de Bissau, informou com ferocidade, damas e cavalheiros, informou com pompa, senhoras e senhores, que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático, nascido, com a ajuda da parteira mão castrense, do ventre putrefacto do totalitarismo fascista que durante tantos decénios nos garroteou e oprimiu, conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca, a decepação da mão esquerda, a extracção de vísceras pelas costas ou o degredo em Macau, os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, engasgar os ralos com tornozelos de faisão, cozinhar refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, concebidas por arquitectos franceses, nos antiquários caquéticos da Rua de São Bento, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel, repito, servir-se das cortinas estampadas do hotel para blusas e adornos, tenho dito, de barregã de moiro». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT