sábado, 14 de setembro de 2019

Amantes de Buenos Aires. Alberto S. Santos. «Cleide tinha um volume no regaço e chamou a neta para junto de si. Raquel reparou que as mãos o afagavam como se fosse algo precioso, uma parte da avó»

jdact

Buenos Aires, 2009
«Sempre que podia, Raquel Contreras recolhia-se no gabinete de trabalho a observar as novidades. Era um ritual que repetia desde o primeiro dia em que fora admitida na livraria El Ateneo Grand Splendid para se tornar numa simples vendedora de livros. Comovia-se cada vez que chegava um título novo dos seus autores preferidos. Afagava a capa, passava os olhos pela sinopse e abria uma página ao acaso. Lia-a e ficava a pensar no modo como o texto se relacionava com a sua própria vida e nos ensinamentos que poderia recolher para aquele dia ou para o futuro. Era algo que a avó Cleide lhe havia ensinado desde criança. Naquela manhã de Março de2009, quando desembrulhou as novidades, sentiu um aperto no estômago. Estremeceu, enfeitiçada pela capa da reimpressão da primeira edição de Cem Anos de Solidão, do autor que mais amava. A memória logo voou para aquela tarde primaveril, na casa de veraneio da avó, sobranceira ao imenso rio da Prata. Quando não lia, a avó Cleide, já muito entrada na idade, passava horas a fio a olhar para o imenso lago salgado, o rio que, afinal, era estuário, como se esperasse que ele lhe trouxesse respostas a algo que a vida não revelara. Pensou na avó e naquele momento que gravara para sempre na memória. Fechou os olhos e recordou-o, com saudade
Cleide tinha um volume no regaço e chamou a neta para junto de si. Raquel reparou que as mãos o afagavam como se fosse algo precioso, uma parte da avó. Acabei de ler este livro. Gostaria de oferecer-to, minha querida. A neta pressentiu que os olhos da avó lutavam para reprimir que a emoção transbordasse em lágrimas. De que fala esse livro, avó? Da solidão, como revela o título. A solidão é uma doença que, quando ataca, nos impede de ser completos e felizes. Imagina uma família inteira, geração atrás de geração, condenada a sofrer deste mal, explicou a anciã, com a voz trémula Raquel pegou no livro com delicadeza. Tratava-se da mítica primeira edição. Virou a capa e deteve-se na dedicatória escrita em letra elegante e firme: Para Cleide, com afecto, para que nunca sintas as dores da solidão nem ouses viver mais de cem anos. Naquele momento, apetecera-lhe interrogar a avó com a pergunta que lhe queimava a garganta: se ela também sofria ou sofrera de solidão, apesar de nunca a ter visto isolada de gente. Família e amigos balanceavam habitualmente, e muitos, à sua volta. Gostaria ainda de saber porque Gabriel García Marquez lhe escrevera tão estranha dedicatória. Mas não o fez, e arrependeu-se para sempre de não lhe ter perguntado. Desde os primórdios da infância, Raquel achava que a avó escondia um grande segredo, um mistério insondável, como o dos Buendía, a gente que povoava o livro que a anciã ternamente lhe oferecera naquele momento e cuja memória não mais se lhe apagara. Abre ao acaso, minha filha! Vamos lá ver o que dá...

O sobressalto de Raquel na sala da livraria El Ateneo não podia ser maior. Cheirou o papel e acariciou a capa dura, fascinada com o galeão azul a navegar contra um bosque espectral e os lírios amarelos. Antes de o abrir numa página à sorte, fechou os olhos e lembrou-se da curta conversa, anos antes, com o seu autor, na Feira do Livro de Buenos Aires. Não mais esquecera as palavras eternas que gravara no coração durante a palestra, quando ele afirmou que a vida não era como uma pessoa a vivera, mas como ela a recordava, ou como a recordava para a poder contar. Desde esse dia, jurou que jamais aderiria aos livros electrónicos, pois não concebia uma mostra onde os volumes não se pegassem com as mãos, não entendia livros que não pudessem ser acariciados, folheados e cheirados, ou que não fossem guardados na mesinha de cabeceira, ou empilhados por vários recantos da casa. Livros que se podiam perder no metropolitano e ficar com a esperança de que tocassem o coração de quem os encontrasse. Receava ainda que o fim dos livros de papel provocasse a extinção das feiras do livro, e os autógrafos dos autores que guardava como as relíquias mais preciosas». In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.

Cortesia de PortoE/JDACT