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Buenos Aires, 2009
«Sempre que podia, Raquel
Contreras recolhia-se no gabinete de trabalho a observar as novidades. Era um ritual
que repetia desde o primeiro dia em que fora admitida na livraria El Ateneo
Grand Splendid para se tornar numa simples vendedora de livros. Comovia-se cada
vez que chegava um título novo dos seus autores preferidos. Afagava a capa,
passava os olhos pela sinopse e abria uma página ao acaso. Lia-a e ficava a pensar
no modo como o texto se relacionava com a sua própria vida e nos ensinamentos que
poderia recolher para aquele dia ou para o futuro. Era algo que a avó Cleide
lhe havia ensinado desde criança. Naquela manhã de Março de2009, quando
desembrulhou as novidades, sentiu um aperto no estômago. Estremeceu,
enfeitiçada pela capa da reimpressão da primeira edição de Cem Anos de Solidão,
do autor que mais amava. A memória logo voou para aquela tarde primaveril, na casa
de veraneio da avó, sobranceira ao imenso rio da Prata. Quando não lia, a avó
Cleide, já muito entrada na idade, passava horas a fio a olhar para o imenso lago
salgado, o rio que, afinal, era estuário, como se esperasse que ele lhe
trouxesse respostas a algo que a vida não revelara. Pensou na avó e naquele momento
que gravara para sempre na memória. Fechou os olhos e recordou-o, com saudade
Cleide tinha um volume no regaço
e chamou a neta para junto de si. Raquel reparou que as mãos o afagavam como se
fosse algo precioso, uma parte da avó. Acabei de ler este livro. Gostaria de oferecer-to,
minha querida. A neta pressentiu que os olhos da avó lutavam para reprimir que a
emoção transbordasse em lágrimas. De que fala esse livro, avó? Da solidão, como
revela o título. A solidão é uma doença que, quando ataca, nos impede de ser completos
e felizes. Imagina uma família inteira, geração atrás de geração, condenada a sofrer
deste mal, explicou a anciã, com a voz trémula Raquel pegou no livro com
delicadeza. Tratava-se da mítica primeira edição. Virou a capa e deteve-se na dedicatória
escrita em letra elegante e firme: Para Cleide, com afecto, para que nunca sintas
as dores da solidão nem ouses viver mais de cem anos. Naquele momento, apetecera-lhe
interrogar a avó com a pergunta que lhe queimava a garganta: se ela também
sofria ou sofrera de solidão, apesar de nunca a ter visto isolada de gente. Família
e amigos balanceavam habitualmente, e muitos, à sua volta. Gostaria ainda de
saber porque Gabriel García Marquez lhe escrevera tão estranha dedicatória. Mas
não o fez, e arrependeu-se para sempre de não lhe ter perguntado. Desde os primórdios
da infância, Raquel achava que a avó escondia um grande segredo, um mistério insondável,
como o dos Buendía, a gente que povoava o livro que a anciã ternamente lhe oferecera
naquele momento e cuja memória não mais se lhe apagara. Abre ao acaso, minha
filha! Vamos lá ver o que dá...
O sobressalto de Raquel na sala
da livraria El Ateneo não podia ser maior. Cheirou o papel e acariciou a
capa dura, fascinada com o galeão azul a navegar contra um bosque espectral e
os lírios amarelos. Antes de o abrir numa página à sorte, fechou os olhos e lembrou-se
da curta conversa, anos antes, com o seu autor, na Feira do Livro de Buenos Aires.
Não mais esquecera as palavras eternas que gravara no coração durante a palestra,
quando ele afirmou que a vida não era como uma pessoa a vivera, mas como ela a recordava,
ou como a recordava para a poder contar. Desde esse dia, jurou que jamais aderiria
aos livros electrónicos, pois não concebia uma mostra onde os volumes não se pegassem
com as mãos, não entendia livros que não pudessem ser acariciados, folheados e cheirados,
ou que não fossem guardados na mesinha de cabeceira, ou empilhados por vários recantos
da casa. Livros que se podiam perder no metropolitano e ficar com a esperança de
que tocassem o coração de quem os encontrasse. Receava ainda que o fim dos livros
de papel provocasse a extinção das feiras do livro, e os autógrafos dos autores
que guardava como as relíquias mais preciosas». In Alberto S. Santos, Amantes de
Buenos Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.
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