sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Poesia. Matilde Campilho. «… o pássaro suspenso olhando a via rápida e catando caca debaixo da unha temendo o gira girar da pequena roda que circula sorte e azar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Explicação do sopro
«(…) Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel
porque nos lugares anónimos é muito possível ficar encosta-
do numa parede branca vendo a água correr no chão do chu-
veiro. Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatro-
centos e vinte quilómetros até achar a costa. Ao alcançá-la,
tiram suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lom-
bar na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada
do sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro
horas e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um
conjunto de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um
dos pães ele fica procurando por algum pedaço da túnica de
Deus. O motorista do autocarro sabe perfeitamente que dentro
da mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de joias
que contém uma caixa de medicamentos que contém uma
caixa de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba
está muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura
de um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está
consciente também de que todo o desenho acha sua acústica
perfeita nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza,
o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em
posição horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por
acaso o observarmos no processo por mais de sete minutos,
podemos reparar que sua caixa torácica constantemente toca
a tela, sempre na mesma cadência. A moça de vinte e sete
anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio
rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos esco-
lher. Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó d
e arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois
passos a galope.

um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas

fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade

um dia você diz que me a….
eu a….-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento
da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT