sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Se a perfeição não seria o não dizer e deixar aquietadas as palavras nos nocturnos desvãos. Um poema pulsante»

Cortesia de wikipedia e jdact

Amavisse
[…]
«Será que apreendo a morte
Perdendo-me a cada dia
No patamar sem fim do sentimento?
Ou quem sabe apreendo a vida
Escurecendo anárquica na tarde
Ou se pudesse
Tomar para o meu peito a vastidão
O caminho dos ventos
O descomedimento da cantiga.

Será que apreendo a sorte
Entrelaçando a cinza do morrer
Ao sémen da tua vida?

Empoçada de instantes, cresce a noite
Descosendo as falas. Um poema entre-muros
Quer nascer, de carne jubilosa
E longo corpo escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não seria o não dizer
E deixar aquietadas as palavras
Nos nocturnos desvãos. Um poema pulsante

Ainda que imperfeito quer nascer.

Estando sobre a mesa o grande corpo
Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas ventas. Nasce intensa
E luzente a minha cria
No azulecer da tinta e à luz do dia.

De grossos muros, de folhas machucadas
É que caminham as gentes pelas ruas.
De dolorido sumo e de duras frentes
É que são feitas as caras. Ai, Tempo

Entardecido de sons que não compreendo
Olhares que se fazem bofetadas, passos
Cavados, fundos, vindos de um alto poço
De um sinistro Nada. E bocas tortuosas

Sem palavras.

E o que há de ser da minha boca de inventos
Neste entardecer. E o do ouro que sai
Da garganta dos loucos, o que há de ser?»

Via Espessa
«De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens de loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT