sábado, 7 de setembro de 2019

A Regra de Quatro. Ian Caldwell e Dustin Thomason. «Trabalhámos juntos no livro durante alguns meses no Inverno, e progredimos bem como equipe. Só então compreendi algo que minha mãe costumava dizer: que os homens na minha família têm uma tendência para apaixonar-se por certos livro…»

jdact

«(…) Sentado no chão ele é quase tão alto quanto eu no divã. Quando estamos perto um do outro ele parece um Otelo que tomou esteroides, um negro de 100 quilos que raspa no umbral da porta com os seus 2 metros. Por contraste eu tenho 1,70 metro, de sapatos. Charlie gosta de nos chamar de Gigante Vermelho e Pigmeu Branco, porque um gigante vermelho é uma estrela extraordinariamente grande e brilhante, enquanto um pigmeu branco é pequeno, compacto e embotado. Tenho de lembrá-lo que Napoleão tinha somente 1,57 metro, mesmo se Paul estiver certo ao dizer que, se convertermos a medida de pés ingleses para pés franceses, o imperador seria, na verdade, mais alto. Paul é o único que não está no quarto agora. Ele desapareceu logo cedo e não foi visto desde então. As coisas entre nós estiveram meio complicadas no mês que passou, e com toda a pressão académica nos últimos tempos, Paul optou por estudar durante a maior parte do tempo em Ivy, o clube-restaurante do qual ele e Gil são membros. Ele está a trabalhar na sua tese de último ano, que todo o estudante de Princeton deve apresentar para se formar. Charlie, Gil e eu teríamos de fazer o mesmo, salvo que a data-limite do nosso departamento já havia passado. Charlie identificou uma nova interação de proteína em certos neurónios que sinalizam caminhos; Gil conseguiu algo no ramo tributário. Eu terminei o meu trabalho no último minuto entre requerimentos e entrevistas, e estou certo de que as bolsas de estudo da Fundação Frankenstein continuarão sempre as mesmas. A tese académica de grau é uma instituição que quase todos desprezam. Ex-alunos falam sobre as suas teses saudosamente, como se não pudessem lembrar de nada mais divertido do que escrever trabalhos de pesquisa de cem páginas enquanto assistem a aulas e escolhem o seu futuro profissional. Na verdade, uma tese académica de grau é uma coisa miserável, um verdadeiro sufoco para escrever. É uma introdução para a vida adulta, disse um dia um professor de sociologia para mim e Charlie, daquele jeito chato que professores têm de fazer prelecção depois que a aula expositiva terminou: é sobre assumir algo tão grande que não se consegue esquivar. Chama-se responsabilidade, ele disse. Experimente para ver se lhe serve. Não importa se a única coisa que ele estava experimentando, para ver lhe servia, era uma bela estudante que estava orientando chamada Kim Silverman. Tudo era sobre responsabilidade. Tenho que concordar com o que Charlie disse na época. Se Kim Silverman é o tipo de coisa da qual os adultos não podem se esquivar, então eu topo. Caso contrário, arriscarei permanecer criança para sempre. Paul foi o último a terminar a sua tese, e não há dúvida de que a sua será a melhor do grupo. De facto, provavelmente a melhor de toda a nossa classe de formandos no departamento de história ou qualquer outro. A magia da inteligência de Paul reside em que ele é mais paciente do que qualquer outra pessoa que conheci e simplesmente vence os problemas.
Contar cem milhões de estrelas, disse-me ele uma vez, à velocidade de uma por segundo, parece um trabalho que ninguém é capaz de completar durante uma vida. Na verdade, levaria só três anos. A chave é concentração, uma disposição para não se distrair. E esse é o talento de Paul: uma intuição de quanto exactamente uma pessoa pode fazer lentamente. É talvez por isso que todos têm tantas expectativas sobre a sua tese, eles sabem quantas estrelas Paul poderia contar em três anos, embora esteja trabalhando na sua tese já há quase quatro. Enquanto o estudante médio pensa num tema, para a sua tese, no outono do ano de graduação e trabalha nele na primavera seguinte, Paul vem lutando com o seu tema desde o tempo de caloiro. Faltando somente poucos meses para o nosso primeiro semestre de Outono, ele decidiu-se centrar num raro texto da Renascença intitulado Hypnerotomachia Poliphili, um nome labiríntico que consigo pronunciar apenas porque o meu pai gastou muito tempo da sua carreira, como historiador da Renascença, estudando-o. Três anos e meio mais tarde, e só vinte e quatro horas antes de seu último prazo, Paul tem suficiente material para deixar babando até mesmo o programa de graduação mais crítico. O problema é que, segundo ele, eu deveria estar também desfrutando das honras.
Trabalhámos juntos no livro durante alguns meses no Inverno, e progredimos bem como equipe. Só então compreendi algo que minha mãe costumava dizer: que os homens na minha família têm uma tendência para apaixonar-se por certos livros quase tão fortemente quanto se apaixonam por uma mulher. O Hypnerotomachia pode não ter muito encanto visível, mas ele tem a astúcia da mulher feia, a lenta e crescente atracção pelo mistério interior que vicia. Quando me peguei resvalando no mesmo caminho de meu pai, consegui desvencilhar-me e admitir derrota antes que pudesse arruinar a minha relação com uma namorada que merecia algo melhor. Desde então as coisas entre mim e Paul não foram mais as mesmas». In Ian Caldwell, Dustin Thomason, A Regra de Quatro, Hypnerotomachia Poliphili, Grandes Narrativas, Editorial Presença, 2004, ISBN 978-972-233-263-5.

Cortesia de EPresença/JDACT