Paris, 3 de Junho de 1940
«A bicicleta que fugiu dos
alemães era urna Hirondelle e pertencia à minha prima Carol, que nela pedalava,
feliz, pelas ruas de Paris, onde estudou até àquela fatídica noite de Junho de 1940,
em que todos os diabos do mundo se soltaram. Montada na Hirondelle, rumava às aulas
na Sorbonne, circulava pelos boulevards e regressava à Residencial de Saint-Sulpice,
perto dos Jardins do Luxemburgo, onde alugara um quarto. Jack, em Paris eu voava
na Hirondelle, garantiu-me Carol tempos depois, acrescentando que aquela bicicleta,
apesar de em segunda mão, era já uma componente essencial da sua identidade e não
se imaginava sem ela. Por isso, quando teve de fugir da guerra, não a deixou para
trás e foi nela que atravessou a França e chegou a Portugal.
Embora indesejada, esta vibrante aventura
começou à vigésima terceira hora do dia 3 de Junho, quando o ribombar longínquo
das primeiras bombas alemãs a acordou. Agitada, levantou-se, abriu a janela e viu
os clarões alaranjados das explosões, recordando-se imediatamente da profecia
fatídica de Madre Mary, a superiora do Saint-Sulpice, que nessa mesma tarde proclamara:
esta noite vão cair bombas em Paris. Aí estavam elas, a sacudir a terra, algures
em Noisy-le-Sec, nos arredores da Cidade-Luz, contrariando as previsões da maioria
dos parisienses, ainda convencidos de que o exército francês não seria derrotado.
Só uma minoria esclarecida, onde se incluía a Madre, sabia perfeitamente que Rommel
entrara pelas Ardenas como faca quente em manteiga. Os jornais chamavam-lhe
guerra-relâmpago, em alemão blitzkrieg, uma palavra agora sempre omnipresente nas
conversas, qual bordão enervante que substituía o sempre negado terror dos franceses.
Carol escutou passos apressados, a
descer as escadas. Alguém assustado? Também podia ser fome. Na Residencial de Saint-Sulpice,
a essa hora a cozinha encontrava-se fechada, mas Madre Mary ordenara que na copa
houvesse sempre pão, água, bolachas e um cesto de fruta, entre as dez da noite e
as seis da manhã, que era a hora em que as noviças inauguravam a lide diária. A
minha prima levantou-se, vestiu o roupão e saiu para o corredor. Quem por ali passara
só podia ser mulher, pois não eram admitidos homens naquela hospedaria. Destinada
a estudantes permanentes ou viajantes ocasionais, ficava junto ao convento e à
igreja com o mesmo nome, famosa pelas suas torres desiguais. Os três edifícios debruçavam-se
sobre um largo pátio comum, cujo portão abria para uma pequena rua, transversal
ao Boulevard Saint-Germain. Quando, já em Lisboa, recordou estes acontecimentos,
Carol contou-me que vivera ali desde que fora estudar para Paris, em Setembro de
1938. Na primeira semana, tinha dormido em casa de uma portuguesa, mas rapidamente
percebera que estava demasiado longe da Sorbonne. Sara, sua amiga e colega de turma,
sugerira então a Residencial de Saint-Sulpice, que parecera perfeita a Carol, não
tanto pelo quarto, pequeno e austero, e muito menos pelo colchão, de palha e duro,
mas por duas outras razões. Primeiro, podia ir a pedalar para a universidade e a
rotina que mais amava era guiar a Hirondelle, uma bicicleta com nome de pássaro
em cima da qual se sentia livre e plena. Segundo, porque gostara instintivamente
de Madre Mary, uma senhora amável e serena, o oposto das madres superioras frias
e desagradáveis a que a literatura anticlerical do século XX tantas vezes recorria.
Portanto, sentia-se em casa e não
teve receio de avançar na penumbra e descer as escadas para o rés-do-chão, onde,
a caminho da copa, foi surpreendida por um chamamento imperativo. Carrô!» In Domingos
Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN
978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT