domingo, 8 de setembro de 2019

A Rainha Liberdade. A Guerra das Coroas. Christian Jacq. «Todos os vestígios de um vil passado devem desaparecer decretou Apopis. Este velho cemitério ocupa demasiado espaço»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas o cretense inclinou-se tanto como os outros antes de se lançar num longo discurso elogiando a grandeza e a força do imperador dos Hicsos, de quem era um fiel vassalo. Durante a maçadora peroração, Ventosa, uma magnífica eurasiática, jovem irmã de Apopis, aproveitava para acariciar o seu amante Minos, um pintor cretense enviado a Auaris para decorar o palácio de Apopis. O jovem corou mas deixou-a continuar. Os servidores do diplomata depositaram aos pés do imperador espadas, vasos de prata e móveis requintados. Creta mostrava-se igual à sua reputação. O almirante Jannas anda a limpar as Cíclades declarou o imperador com a sua voz rouca que fez estremecer a assistência e esse esforço de guerra custa-me caro. Como Creta fica próximo do lugar dos combates, entregar-me-á um tributo suplementar. O embaixador mordeu os lábios e curvou-se de novo. Apopis estava muito satisfeito com a decoração cretense do seu palácio fortificado e com o mobiliário que ali acumulara: um leito real roubado em Mênfis, queimadores de perfume e bacias de prata dispostas sobre as mesas de alabastro na sua sala de banhos com chão de calcário vermelho e, sobretudo, esplêndidas lâmpadas formadas por uma base em calcário e uma pequena coluna em sicómoro encimada por uma taça em bronze. No fim das suas abluções, o imperador vestiu uma túnica castanha com franjas e dirigiu-se ao apartamento da sua esposa Tani, sem sombra de dúvida a mulher mais feia da capital, à qual recusava o título de imperatriz para não ceder nem uma migalha de poder. Estás finalmente pronta?
Pequena e gorda, Tani experimentava sem cessar novos unguentos na esperança de melhorar as suas feições. Mas os resultados eram desastrosos. Felizmente, aquela antiga criada podia vingar-se quotidianamente nas egípcias outrora bem colocadas na vida e agora reduzidas à escravidão. Olha para isto, Apopis: não é surpreendente? Tani manipulava pérolas fabricadas com um estranho material. O que é? Segundo a minha nova escrava originária de Mênfis, chama-se vidro. Obtém-se fundindo quartzo com natrão ou cinzas. E pode-se colorir como se quiser! Pérolas de vidro... Estas são um pouco opacas, mas deve-se poder aperfeiçoar o processo. Anda, tenho pressa de ver realizados os nossos dois projectos, o teu e o meu. Vou acabar de me maquilhar. Tani recobriu a testa e as faces de uma espessa camada de khôl, à base de galena, óxido de manganésio, ocre castanho e malaquita.
Indiferente à acentuada fealdade da esposa, o imperador sempre apreciara o seu ódio ao Egipto que lhe inspirava excelentes ideias. Apertada num vestido com riscas brancas sobre fundo castanho, Tani saiu de cabeça levantada do palácio, um passo atrás do marido. Khamudi e a guarda imperial esperavam-nos. Está tudo pronto, Majestade. O cortejo dirigiu-se para o último cemitério egípcio de Auaris, onde estavam enterrados os antepassados que ali tinham vivido antes da invasão. Centenas de escravos indígenas apertavam-se uns contra os outros, por ordem da polícia. Todos receavam uma execução massiva.
Todos os vestígios de um vil passado devem desaparecer decretou Apopis. Este velho cemitério ocupa demasiado espaço. É por isso que vamos construir aqui casas destinadas aos oficiais. Uma idosa mulher conseguiu destacar-se da multidão e ajoelhou-se, implorante. Não, senhor, não ataqueis os nossos antepassados! Deixai-os dormir em paz, suplico-vos! Com uma pancada violenta desferida com o lado da mão, Khamudi quebrou o pescoço da insolente. Desembaracem-me disso ordenou aos polícias e abatam imediatamente quem ousar interromper o imperador. A partir de agora continuou Apopis enterrareis os vossos mortos diante das vossas casas ou mesmo no interior delas. Na minha cidade, não devem ocupar espaço. Não haverá mais nem oferendas nem preces pelos defuntos. Os mortos já não existem. Não há nem Belo Ocidente, nem Oriente eterno, nem Luz de ressurreição. Quem for surpreendido a exercer as funções de sacerdote funerário será imediatamente executado. A dama Tani estava encantada: com o seu génio habitual, Apopis não se contentara em pegar na sua ideia mas melhorara-a bastante. Nada podia mergulhar melhor os egípcios no desespero. Serem privados de qualquer contacto com os seus antepassados far-lhes-ia finalmente compreender que tinha nascido um mundo novo. O cortejo imperial tomou as barcas para atravessar o braço de água e atingir a ilha na qual estava edificado o templo de Set. Construído em tijolos, o santuário principal de Auaris era igualmente dedicado ao deus sírio da tempestade, Hadad. Em frente da entrada erguia-se um altar rectangular, rodeado de carvalhos e de fossas cheias com ossos calcinados de animais sacrificados, principalmente burros». In Christian Jacq, A Rainha Liberdade, A Guerra das Coroas, ISBN 978-852-861-216-5, Bertrand Editora, 2006, ISBN 978-972-251-281-7.

Cortesia de BEditora/JDACT