Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Mas o cretense inclinou-se
tanto como os outros antes de se lançar num longo discurso elogiando a grandeza
e a força do imperador dos Hicsos, de quem era um fiel vassalo. Durante a
maçadora peroração, Ventosa, uma magnífica eurasiática, jovem irmã de Apopis, aproveitava
para acariciar o seu amante Minos, um pintor cretense enviado a Auaris para decorar
o palácio de Apopis. O jovem corou mas deixou-a continuar. Os servidores do diplomata
depositaram aos pés do imperador espadas, vasos de prata e móveis requintados.
Creta mostrava-se igual à sua reputação. O almirante Jannas anda a limpar as
Cíclades declarou o imperador com a sua voz rouca que fez estremecer a
assistência e esse esforço de guerra custa-me caro. Como Creta fica próximo do
lugar dos combates, entregar-me-á um tributo suplementar. O embaixador mordeu
os lábios e curvou-se de novo. Apopis estava muito satisfeito com a decoração
cretense do seu palácio fortificado e com o mobiliário que ali acumulara: um
leito real roubado em Mênfis, queimadores de perfume e bacias de prata
dispostas sobre as mesas de alabastro na sua sala de banhos com chão de calcário
vermelho e, sobretudo, esplêndidas lâmpadas formadas por uma base em calcário e
uma pequena coluna em sicómoro encimada por uma taça em bronze. No fim das suas
abluções, o imperador vestiu uma túnica castanha com franjas e dirigiu-se ao
apartamento da sua esposa Tani, sem sombra de dúvida a mulher mais feia da
capital, à qual recusava o título de imperatriz para não ceder nem uma migalha
de poder. Estás finalmente pronta?
Pequena e gorda, Tani
experimentava sem cessar novos unguentos na esperança de melhorar as suas
feições. Mas os resultados eram desastrosos. Felizmente, aquela antiga criada
podia vingar-se quotidianamente nas egípcias outrora bem colocadas na vida e
agora reduzidas à escravidão. Olha para isto, Apopis: não é surpreendente? Tani
manipulava pérolas fabricadas com um estranho material. O que é? Segundo a
minha nova escrava originária de Mênfis, chama-se vidro. Obtém-se fundindo quartzo
com natrão ou cinzas. E pode-se colorir como se quiser! Pérolas de vidro...
Estas são um pouco opacas, mas deve-se poder aperfeiçoar o processo. Anda,
tenho pressa de ver realizados os nossos dois projectos, o teu e o meu. Vou
acabar de me maquilhar. Tani recobriu a testa e as faces de uma espessa camada
de khôl, à base
de galena, óxido de manganésio, ocre castanho e malaquita.
Indiferente à acentuada fealdade
da esposa, o imperador sempre apreciara o seu ódio ao Egipto que lhe inspirava
excelentes ideias. Apertada num vestido com riscas brancas sobre fundo
castanho, Tani saiu de cabeça levantada do palácio, um passo atrás do marido. Khamudi
e a guarda imperial esperavam-nos. Está tudo pronto, Majestade. O cortejo
dirigiu-se para o último cemitério egípcio de Auaris, onde estavam enterrados
os antepassados que ali tinham vivido antes da invasão. Centenas de escravos
indígenas apertavam-se uns contra os outros, por ordem da polícia. Todos
receavam uma execução massiva.
Todos os vestígios de um vil
passado devem desaparecer decretou Apopis. Este velho cemitério ocupa demasiado
espaço. É por isso que vamos construir aqui casas destinadas aos oficiais. Uma
idosa mulher conseguiu destacar-se da multidão e ajoelhou-se, implorante. Não,
senhor, não ataqueis os nossos antepassados! Deixai-os dormir em paz,
suplico-vos! Com uma pancada violenta desferida com o lado da mão, Khamudi
quebrou o pescoço da insolente. Desembaracem-me disso ordenou aos polícias e
abatam imediatamente quem ousar interromper o imperador. A partir de agora
continuou Apopis enterrareis os vossos mortos diante das vossas casas ou mesmo
no interior delas. Na minha cidade, não devem ocupar espaço. Não haverá mais nem
oferendas nem preces pelos defuntos. Os mortos já não existem. Não há nem Belo Ocidente,
nem Oriente eterno, nem Luz de ressurreição. Quem for surpreendido a exercer as
funções de sacerdote funerário será imediatamente executado. A dama Tani estava
encantada: com o seu génio habitual, Apopis não se contentara em pegar na sua
ideia mas melhorara-a bastante. Nada podia mergulhar melhor os egípcios no
desespero. Serem privados de qualquer contacto com os seus antepassados
far-lhes-ia finalmente compreender que tinha nascido um mundo novo. O cortejo
imperial tomou as barcas para atravessar o braço de água e atingir a ilha na
qual estava edificado o templo de Set. Construído em tijolos, o santuário
principal de Auaris era igualmente dedicado ao deus sírio da tempestade, Hadad.
Em frente da entrada erguia-se um altar rectangular, rodeado de carvalhos e de
fossas cheias com ossos calcinados de animais sacrificados, principalmente burros».
In
Christian Jacq, A Rainha Liberdade, A Guerra das Coroas, ISBN
978-852-861-216-5, Bertrand Editora, 2006, ISBN 978-972-251-281-7.
Cortesia de BEditora/JDACT