jdact
«(…)
Depois do jantar, no quarto, o homem, debruçado da magnificência presidencial
da janela a que apenas faltava uma colcha e um discurso, confrontou-se pela
primeira vez com a noite fosca, de carvão de escape, de Lixboa, sob a forma de
um parque a descer para uma praça redonda, e de árvores que se aglomeravam ou
separavam de acordo com a atmosfera inexplicável dos sonhos, surpreendendo-se
de não encontrar cubatas nem missões de noviças famélicas, e da ausência do
odor de fémur bichoso da mandioca nas esteiras. O halo das lâmpadas da rua
impedia-o de distinguir o céu onde os lagos palustres da Guiné transbordavam de
peixes estranhos, guerrilheiros e caniços, ocultos pela neblina do cacimbo.
Veio-lhe à cabeça a frase da esposa, Já não pertenço aqui, e pensou que na
idade de elefantes deles, reformados, sem dinheiro, sem família, sem móveis,
dependentes de uma pensãozita que não lhes entregariam mais, perdida nos
escaninhos burocráticos ou nas gavetas do palácio dos pretos, em que mariposas
e vespas se multiplicavam no interior dos armários e os fuzilados se afundavam
nas dálias dos jardins, nada lhes sobejava para além de si próprios, da máquina
de costura suturando o tempo, do cofre de embutidos que sei lá onde pára, olha
que coisa, e do bom senso de morrer, de engolir a embalagem completa das
pílulas calmantes que o médico dos fuzileiros lhe receitava contra a enxaqueca
dos pesadelos, umas pastilhas que sabiam a cré e possuíam a virtude de
despenhar uma pessoa nas águas sem limites do esquecimento completo.
Preparava-se para perguntar à mulher Onde meteste a maçada do remédio que o não
vejo, que é da gaita dos comprimidos da ausência total, quando a escutou de
dentro a chamá-lo dos damascos absurdos, das sedas incríveis, das almofadas da
avestruz e dos móveis sem preço riscados a canivete por hóspedes pretéritos, e
a encontrou de pé, numa postura vitoriosa, apoiando a mão na máquina de costura
ferrugenta, cercada por um emaranhado de fios, pedaços de colcha, fatias de
reposteiro e sobras de cortina espalhadas ao acaso no soalho. Vestia uma blusa
e uma saia vermelhas e brancas, idênticas às das restantes hóspedes, e um cinto
em que se entrançavam, como nos truques dos ilusionistas, os aros de latão das
janelas. O seu sorriso era pelo menos tão alegre, malicioso e jovem como na
época da fotografia de casados e das primeiras horas de dificuldade e aflição
no desassossego dos lençóis: convidaram-me para um churrasco de gato na casa de
banho do andar de cima, disse ela a apontar o sapo de baquelite do telefone
prestes a mover-se a custo ao comprido de um tampo de verniz. Queres vir?
O primeiro amigo que fizeram na
Residencial Apóstolo das Índias dormia três colchões adiante, chamava-se Diogo
Cão, tinha trabalhado em Angola de fiscal da Companhia das Águas, e quando à
tarde, depois da mulata partir para o bar, se sentava comigo e com o miúdo nos
degraus da pensão a ver nas ripas dos telhados o frenesim das rolas,
anunciava-me, já de voz incerta, beberricando de um frasco oculto no forro do
casaco, que há trezentos, ou quatrocentos, ou quinhentos anos comandara as naus
do Infante pela Costa de África abaixo. Explicava-me a melhor forma de
estrangular revoltas de marinheiros, salgar a carne e navegar à bolina e de
como era difícil viver nesse árduo tempo de oitavas épicas e de deuses
zangados, e eu fingia acreditá-lo para não contrariar a susceptibilidade das
suas iras de bêbedo, até ao dia em que abriu a mala à minha frente e debaixo
das camisas e dos coletes e das cuecas manchadas de vomitado e de borras de
vinho, dei com bolorentos mapas antigos e um registo de bordo a desfazer-se». In António Lobo Antunes, As Naus,
1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT