sábado, 28 de setembro de 2019

As Naus. António Lobo Antunes. «O primeiro amigo que fizeram na Residencial Apóstolo das Índias dormia três colchões adiante, chamava-se Diogo Cão, tinha trabalhado em Angola de fiscal da Companhia das Águas…»

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«(…) Depois do jantar, no quarto, o homem, debruçado da magnificência presidencial da janela a que apenas faltava uma colcha e um discurso, confrontou-se pela primeira vez com a noite fosca, de carvão de escape, de Lixboa, sob a forma de um parque a descer para uma praça redonda, e de árvores que se aglomeravam ou separavam de acordo com a atmosfera inexplicável dos sonhos, surpreendendo-se de não encontrar cubatas nem missões de noviças famélicas, e da ausência do odor de fémur bichoso da mandioca nas esteiras. O halo das lâmpadas da rua impedia-o de distinguir o céu onde os lagos palustres da Guiné transbordavam de peixes estranhos, guerrilheiros e caniços, ocultos pela neblina do cacimbo. Veio-lhe à cabeça a frase da esposa, Já não pertenço aqui, e pensou que na idade de elefantes deles, reformados, sem dinheiro, sem família, sem móveis, dependentes de uma pensãozita que não lhes entregariam mais, perdida nos escaninhos burocráticos ou nas gavetas do palácio dos pretos, em que mariposas e vespas se multiplicavam no interior dos armários e os fuzilados se afundavam nas dálias dos jardins, nada lhes sobejava para além de si próprios, da máquina de costura suturando o tempo, do cofre de embutidos que sei lá onde pára, olha que coisa, e do bom senso de morrer, de engolir a embalagem completa das pílulas calmantes que o médico dos fuzileiros lhe receitava contra a enxaqueca dos pesadelos, umas pastilhas que sabiam a cré e possuíam a virtude de despenhar uma pessoa nas águas sem limites do esquecimento completo. Preparava-se para perguntar à mulher Onde meteste a maçada do remédio que o não vejo, que é da gaita dos comprimidos da ausência total, quando a escutou de dentro a chamá-lo dos damascos absurdos, das sedas incríveis, das almofadas da avestruz e dos móveis sem preço riscados a canivete por hóspedes pretéritos, e a encontrou de pé, numa postura vitoriosa, apoiando a mão na máquina de costura ferrugenta, cercada por um emaranhado de fios, pedaços de colcha, fatias de reposteiro e sobras de cortina espalhadas ao acaso no soalho. Vestia uma blusa e uma saia vermelhas e brancas, idênticas às das restantes hóspedes, e um cinto em que se entrançavam, como nos truques dos ilusionistas, os aros de latão das janelas. O seu sorriso era pelo menos tão alegre, malicioso e jovem como na época da fotografia de casados e das primeiras horas de dificuldade e aflição no desassossego dos lençóis: convidaram-me para um churrasco de gato na casa de banho do andar de cima, disse ela a apontar o sapo de baquelite do telefone prestes a mover-se a custo ao comprido de um tampo de verniz. Queres vir?

O primeiro amigo que fizeram na Residencial Apóstolo das Índias dormia três colchões adiante, chamava-se Diogo Cão, tinha trabalhado em Angola de fiscal da Companhia das Águas, e quando à tarde, depois da mulata partir para o bar, se sentava comigo e com o miúdo nos degraus da pensão a ver nas ripas dos telhados o frenesim das rolas, anunciava-me, já de voz incerta, beberricando de um frasco oculto no forro do casaco, que há trezentos, ou quatrocentos, ou quinhentos anos comandara as naus do Infante pela Costa de África abaixo. Explicava-me a melhor forma de estrangular revoltas de marinheiros, salgar a carne e navegar à bolina e de como era difícil viver nesse árduo tempo de oitavas épicas e de deuses zangados, e eu fingia acreditá-lo para não contrariar a susceptibilidade das suas iras de bêbedo, até ao dia em que abriu a mala à minha frente e debaixo das camisas e dos coletes e das cuecas manchadas de vomitado e de borras de vinho, dei com bolorentos mapas antigos e um registo de bordo a desfazer-se». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT