terça-feira, 24 de setembro de 2019

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «A seguir ao jantar os jeeps dos oficiais giravam de palhota em palhota hesitações de pirilampos: o amor barato e rápido em compartimentos abafados, aclarados por pavios indecisos de petróleo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Gago Coutinho era também o café do Mete Lenha, branco sopinha de massa cujo esforço para falar o torcia de caretas de defecação, casado com uma espécie de botija de gascidla enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos beliscões com que os soldados lhe homenageavam as nádegas atlânticas, difíceis, aliás, de discernir numa mulher aparentada a um imenso glúteo rolando em que mesmo as bochechas possuíam qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a inchaço incómodo de hemorróida, café para refrescos inocentes nas tão compridas tarde de domingo, e onde pela primeira vez o tenente, confidencial, abriu a carteira para me mostrar a fotografia da criada, e revelou, recostando-se para trás no assento de ferro por demais exíguo para as duas omoplatas enormes, o produto sintético das meditações de uma vida: sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa. No edifício sinistro do hospital civil, idêntico a uma pensão de província moribunda de paredes empoladas por furúnculos de humidade, os doentes de paludismo estremeciam de febre nos degraus da entrada, no corredor, na sala de consulta, no cubículo destinado às injeções, à espera das ampolas de quinino na tranquilidade imemorial dos negros, para quem o tempo, a distância e a vida possuem uma profundeza e um significado impossíveis de explicar a quem nasceu entre túmulos de infantas e despertadores de folha, aguilhoado por datas de batalhas, mosteiros e relógios de ponto. Diante da secretária, espessa como um bunker, à qual instalava a minha ciência de manual, a miséria e a fome desfilavam manhã fora na serenidade monótona da chuva de Setembro, e a única resposta que a minha impotência me permitia eram as pastilhas de vitamina da tropa adoçadas por um sorriso de desculpa e de vergonha.
Impedidos de pescar e de caçar, sem lavras, prisioneiros do arame farpado e das esmolas de peixe seco da administração, espiados pela PIDE, tiranizados pelos cipaios, os luchazes fugiam para a mata, onde o MPLA, inimigo invisível, se escondia, obrigando-nos a uma alucinante guerra de fantasmas. A cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro, empurrado para aquele espanto de pólvora numa imensa surpresa: sãos os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses, o car… da pu… que os pariu combinados para no fod… os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia, a jogar às damas com o capitão idoso saído de sargento que cheirava a menopausa de escriturário resignado e sofria do azedume crónico da colite, quem me decifra o absurdo disto, as cartas que recebo e me falam de um mundo que a lonjura tornou estrangeiro e irreal, os calendários que risco de cruzes a contar os dias que me separam do regresso e apenas achando à minha frente um túnel infindável de meses, um escuro túnel de meses onde me precipito mugindo, boi ferido que não entende, que não entende, que não logra entender e acaba por enterrar o triste focinho molhado nos ossos de frango com esparguete do rancho, do mesmo modo, percebe, que aqui, na sua companhia, me sinto cavalo de narinas enfiadas na alcofa de vodka, mastigando o feno azedo do limão.
A seguir ao jantar os jeeps dos oficiais giravam de palhota em palhota hesitações de pirilampos: o amor barato e rápido em compartimentos abafados, aclarados por pavios indecisos de petróleo que coloriam as paredes de barro de uma ilusão de capelas. Chegava-se de bisnaga antivenérea no bolso e aplicava-se a pomada através da braguilha aberta à maneira de uma vulva de pano, sob o olhar indiferente de mulheres de dentes serrados em triângulo, acocoradas na cama no alheamento de perfil de certos retratos de Picasso, em cuja curva dos lábios flutuam Guernicas desdenhosas. No mesmo colchão dormiam, em regra, os filhos, as galinhas e algum antepassado decrépito perdido em pesadelos de múmia, rosnando os hieróglifos dos seus sonhos. O tenente fornicava de pala do boné para trás e pistola à cinta, com o impedido de espingarda em riste a vigiar as redondezas, o oficial de operações mandou vir uma máquina de costura do Luso e cozia bainhas de calça de madrugada ao lado de uma negra esplêndida, de enérgicos seios pendentes como os da loba de Roma, e o capitão das damas, instalado ao volante, pedia à raparigas impúberes que o masturbassem, oferecendo em troca cartuchinhos de rebuçados de hortelã-pimenta: o branco chegou com um chicote, cantava o milícia na viola, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT