sábado, 28 de setembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Usted gusta mucho de las chicas y las chicas le gustan mucho de usted. Tíene usted un malo olhado de hace mucho tiempo, pero va le aparecer una persona que le va cambiar la vida»

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A Letra Pitagórica
«(…) Juntando os retalhos da conversa das lavadeiras, ficamos a saber que, quando el-rei João III confirmou o contrato feito por seu pai com o conde de Marialva, Francisco Coutinho, quanto ao futuro casamento do infante Fernando com dona Guiomar Coutinho, interpôs-se o marquês de Torres Novas, João Lancastre, filho do duque de Coimbra, Jorge. Afirmava que tal casamento não se podia realizar dado que a condessa de Marialva e de Loulé já era casada com ele. Grande escândalo e interdição na corte!... João III vê-se entre o dever de manter a palavra de seu pai e a amizade que dedicava ao companheiro de infância João Lancastre neto de João II. Ordena então que o caso fique sob a alçada de um tribunal eclesiástico, visto tratar-se de problema do seu foro. Durante nove anos se arrasta o assunto, sem que se lhe desse resolução, até que por fim, ouvida mais uma vez a condessa, esta nega ter alguma vez casado com o marquês de Torres Novas. Realiza-se então o casamento do príncipe Fernando com Guiomar, casamento infeliz, pois quatro anos passados morrem os filhos do casal, morre o marido e morre a esposa. A versão da maior parte das pessoas era que tais mortes haviam sido castigo de Deus e, como os acontecimentos estavam ainda muito frescos, não se falava doutra coisa e cada vez que contavam a triste história acrescentavam-lhe pormenores ouvidos às comadres das comadres dos compadres: que o marquês estava a definhar de langor no seu palácio de Azeitão; que havia dele e de dona Guiomar uma filha clandestina, freira em Setúbal, que era tal e qual o retrato da mãe; que o próprio rei andava roído de remorsos porque conhecera muito de perto os amores do marquês com a condessa...
Deixamos as mulherzinhas na sua infindável tagarelice e fomos visitar a vila, que era muito pitoresca. O seu castelo conservava ainda trechos de muralha mourisca, junto da qual se erguia um cruzeiro de granito escurecido pelo tempo; o casario típico, de janelas e portas trabalhadas, seus terraços e açoteias, e suas chaminés peculiares em forma de canudos, de espigueiros, de zimbórios e minaretes, de coruchéus; a igreja matriz de portal em ogiva; o hospital ou albergaria da Misericórdia, o pelourinho, a Ermida da Senhora da Conceição, os seus conventos, de que se destacava pela sua beleza e sumptuosidade o dos agostinhos. Demoramos em Loulé apenas o tempo de refazermos as forças e o farnel. No dia seguinte, de manhãzinha, pusemo-nos a caminho. Quando íamos a passar pelo Santuário da Senhora da Piedade, abre-se-nos aos olhos um larguíssimo panorama de terras acidentadas e pobres de vegetação.
No quiere usted leer la sina, jovencito?,era uma velha cigana que se acercara de Diogo, num sotaque meio espanholado. Diogo fez sinal que não com a mão, e a cabeça, mas a velha insistia: tenia un futuro mui bueno, casaria dos veces, seria mui rico y habría diece hijos. Dejasse-le veer su mano que le diria mas cosas. Como o meu companheiro não estivesse pelos ajustes, ela virou-se para mim: usted, loirito? Deje-me leer la buena-dicha. Não me fiz rogado. É meu feitio o convívio com as outras pessoas e o experimentar coisas ainda não sabidas da vida ou ainda não vividas. Estendi-lhe a mão, com grande escândalo de Diogo: não fizesse isso, que era pecado! Em voz baixa ao meu ouvido. A cigana, sem olhar, ia a começar a sua lengalenga quando de repente se calou a mirar-me a palma da mão. Esteve assim uns longos segundos. Que há, tiazinha?, perguntei a rir. Que vês na minha mão? A linha da vida é assim tão curta? Saiba usted, mi Hidalgo, respondeu reservada, que habrá una lunga vida.
Diogo aproximava-se curioso. Ela entretanto murmurava umas palavras incompreensíveis e começou então a falar muito depressa, em cantilena há muito decorada, dando a clara ideia de que encobria um ror de coisas. Usted gusta mucho de las chicas y las chicas le gustan mucho de usted. Tíene usted un malo olhado de hace mucho tiempo, pero va le aparecer una persona que le va cambiar la vida. Miro en su mano un M que no le hace la vida negra. Usted tien acordado con enxaquecas y en su sina grabada en la palma de la mano está escrito que va usted a tenir mucha dita y mucha fortuna. Dice aun su sina que va conocer un E que le trará mucha felicídad y mucho cariño. Vea que le quieren enganar y en sus costas hablan mui malo de usted, usted ha sido hecho para vencerlos. Es mui alegre y holgazan y hade viajar mucho y conocer otras terras y pueblos. Andará sobre la mar pero las tempestades no le hande molestar. Hay una mujer mui hermosa y mui guapa y mui noble en su vida, pero usted jamás la conocerá. Hay mas mujeres en su camino... Usted estará sozinho y... Interrompeu-se a observar-me a mão com muita atenção. Estávamos suspensos eu e Diogo. No puedo..., decir más..., terminava ela. Linhas mui confusas... Un gran mistério en su vida, mi hidalgo. Tengo visto muchas manos pero jamás una como esta. La otra, por favor. Estendi-lhe a mão esquerda. Lá estava! Mano de hidalgo y las linhas del mistério... Deseo que usted sea mui feliz. Não o serei? Pero si, pero si ! Dei-lhe uma moeda e ela beijou-me a mão. Seguimos caminho». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT