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A
Letra Pitagórica
«(…) Juntando os retalhos da
conversa das lavadeiras, ficamos a saber que, quando el-rei João III confirmou
o contrato feito por seu pai com o conde de Marialva, Francisco Coutinho,
quanto ao futuro casamento do infante Fernando com dona Guiomar Coutinho,
interpôs-se o marquês de Torres Novas, João Lancastre, filho do duque de
Coimbra, Jorge. Afirmava que tal casamento não se podia realizar dado que a
condessa de Marialva e de Loulé já era casada com ele. Grande escândalo e
interdição na corte!... João III vê-se entre o dever de manter a palavra de seu
pai e a amizade que dedicava ao companheiro de infância João Lancastre neto de João
II. Ordena então que o caso fique sob a alçada de um tribunal eclesiástico,
visto tratar-se de problema do seu foro. Durante nove anos se arrasta o
assunto, sem que se lhe desse resolução, até que por fim, ouvida mais uma vez a
condessa, esta nega ter alguma vez casado com o marquês de Torres Novas.
Realiza-se então o casamento do príncipe Fernando com Guiomar, casamento
infeliz, pois quatro anos passados morrem os filhos do casal, morre o marido e
morre a esposa. A versão da maior parte das pessoas era que tais mortes haviam
sido castigo de Deus e, como os acontecimentos estavam ainda muito frescos, não
se falava doutra coisa e cada vez que contavam a triste história
acrescentavam-lhe pormenores ouvidos às comadres das comadres dos compadres: que
o marquês estava a definhar de langor no seu palácio de Azeitão; que havia dele
e de dona Guiomar uma filha clandestina, freira em Setúbal, que era tal e qual
o retrato da mãe; que o próprio rei andava roído de remorsos porque conhecera
muito de perto os amores do marquês com a condessa...
Deixamos as mulherzinhas na sua
infindável tagarelice e fomos visitar a vila, que era muito pitoresca. O seu
castelo conservava ainda trechos de muralha mourisca, junto da qual se erguia
um cruzeiro de granito escurecido pelo tempo; o casario típico, de janelas e
portas trabalhadas, seus terraços e açoteias, e suas chaminés peculiares em
forma de canudos, de espigueiros, de zimbórios e minaretes, de coruchéus; a
igreja matriz de portal em ogiva; o hospital ou albergaria da Misericórdia, o
pelourinho, a Ermida da Senhora da Conceição, os seus conventos, de que se
destacava pela sua beleza e sumptuosidade o dos agostinhos. Demoramos em Loulé
apenas o tempo de refazermos as forças e o farnel. No dia seguinte, de
manhãzinha, pusemo-nos a caminho. Quando íamos a passar pelo Santuário da
Senhora da Piedade, abre-se-nos aos olhos um larguíssimo panorama de terras
acidentadas e pobres de vegetação.
No quiere usted leer la sina,
jovencito?,era uma velha cigana que se acercara de Diogo, num sotaque meio
espanholado. Diogo fez sinal que não com a mão, e a cabeça, mas a velha
insistia: tenia un futuro mui bueno, casaria dos veces, seria mui rico y habría
diece hijos. Dejasse-le veer su mano que le diria mas cosas. Como o meu
companheiro não estivesse pelos ajustes, ela virou-se para mim: usted, loirito?
Deje-me leer la buena-dicha. Não me fiz rogado. É meu feitio o convívio com as
outras pessoas e o experimentar coisas ainda não sabidas da vida ou ainda não
vividas. Estendi-lhe a mão, com grande escândalo de Diogo: não fizesse isso,
que era pecado! Em voz baixa ao meu ouvido. A cigana, sem olhar, ia a começar a
sua lengalenga quando de repente se calou a mirar-me a palma da mão. Esteve
assim uns longos segundos. Que há, tiazinha?, perguntei a rir. Que vês na minha
mão? A linha da vida é assim tão curta? Saiba usted, mi Hidalgo, respondeu
reservada, que habrá una lunga vida.
Diogo
aproximava-se curioso. Ela entretanto murmurava umas palavras incompreensíveis
e começou então a falar muito depressa, em cantilena há muito decorada, dando a
clara ideia de que encobria um ror de coisas. Usted gusta mucho de las chicas y
las chicas le gustan mucho de usted. Tíene usted un malo olhado de hace mucho
tiempo, pero va le aparecer una persona que le va cambiar la vida. Miro en su
mano un M que no le hace la vida negra. Usted tien acordado con enxaquecas y en
su sina grabada en la palma de la mano está escrito que va usted a tenir mucha
dita y mucha fortuna. Dice aun su sina que va conocer un E que le trará mucha
felicídad y mucho cariño. Vea que le quieren enganar y en sus costas hablan mui
malo de usted, usted ha sido hecho para vencerlos. Es mui alegre y holgazan y
hade viajar mucho y conocer otras terras y pueblos. Andará sobre la mar pero
las tempestades no le hande molestar. Hay una mujer mui hermosa y mui guapa y
mui noble en su vida, pero usted jamás la conocerá. Hay mas mujeres en su camino...
Usted estará sozinho y... Interrompeu-se a observar-me a mão com muita atenção.
Estávamos suspensos eu e Diogo. No puedo..., decir más..., terminava ela. Linhas
mui confusas... Un gran mistério en su vida, mi hidalgo. Tengo visto muchas
manos pero jamás una como esta. La otra, por favor. Estendi-lhe a mão esquerda.
Lá estava! Mano de hidalgo y las linhas del mistério... Deseo que usted sea mui
feliz. Não o serei? Pero si, pero si ! Dei-lhe uma moeda e ela beijou-me a mão.
Seguimos caminho». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT