quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «… a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada»

jdact e wikipedia

«(…) Havia ainda uma quarta espécie, a das criaturas, que englobava cabeleireiras, manicuras, dactilógrafas e enteadas de sargentos, as quais rondavam os homens da tribo tecendo à sua volta uma pecaminosa teia de soslaios magnetizadores. As «riaturas não se casavam: registavam-se, não iam à missa, não se afligiam com o ingente problema da conversão da Rússia: consagravam as suas existências demoníacas a prazeres que eu entendia mal em terceiros andares sem elevador de onde os meus tios regressavam à socapa risonhos de juventude recuperada, enquanto as fêmeas do clã, na igreja, se dirigiam para a comunhão de olhos fechados e língua de fora, camaleões prontos a devorarem os mosquitos das hóstias numa gula mística. De vez em quando, a meio da refeição, se o psiquiatra, então garoto, mastigava de boca aberta ou pousava os cotovelos na toalha, o avô apontava para ele o indicador definitivo e profetizava cavernosamente: hás-de acabar nas mãos da cozinheira como o peru.
E o tremendo silêncio que se seguia avalizava com o seu selo branco a iminência dessa catástrofe. Responda, ordenou o colega. Vê-se a comer à mesa com um carpinteiro? O médico tornou a ele no esforço de quem ajusta a imagem de um microscópio desfocado: do alto de uma pirâmide de preconceitos quarenta gerações burguesas contemplavam-no. Porque não?, disse ele desafiando os cavalheiros de pêra e as damas de abundante busto boleado ao torno que se tinham trabalhosamente cruzado entre si, num crochet complexo, atrapalhados pelos suspensórios e pelas barbas do corpete, para produzirem, ao cabo de um século de deveres conjugais, um descendente capaz de revoltas tão impensáveis como a de uma dentadura postiça que pulasse do copo de água em que sorria à noite para morder o próprio dono. O colega recuou dois passos, siderado: porque não? Porque não? Homem, você é um anarquista, um marginal, você pactua com o Leste, você aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Como sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pelo rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, sair exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro. Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada. Nomes mágicos: Cuíto-Cuanavale, Zemza do Itombe, Narriquinha, a Baixa do Cassanje coberta pelas altas pestanas dos girassóis em manhãs limpas como ossos de luz, bailundos empurrados a pontapé para as fazendas do norte, São Paulo de Luanda imitando o Areeiro encostado à valva da baía. Que sabe este palerma de África, interrogou-se o psiquiatra, para além dos cínicos e imbecis argumentos obstinados da Acção Nacional Popular e dos discursos de seminário das botas mentais do Salazar, virgem sem útero mascarada de homem, filho de dois cónegos explicou-me uma ocasião uma doente, que sei eu que durante vinte e sete meses morei na angústia do arame farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assisti ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Jingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África? A imagem da mulher à espera dele entre as mangueiras de Marimba pejadas de morcegos aguardando o crepúsculo apareceu-lhe numa guinada de saudade violentamente física como uma víscera que explode. Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT