jdact
e wikipedia
«(…)
Havia ainda uma quarta espécie, a das criaturas, que englobava
cabeleireiras, manicuras, dactilógrafas e enteadas de sargentos, as quais
rondavam os homens da tribo tecendo à sua volta uma pecaminosa teia de soslaios
magnetizadores. As «riaturas não se casavam: registavam-se, não iam à missa,
não se afligiam com o ingente problema da conversão da Rússia: consagravam as
suas existências demoníacas a prazeres que eu entendia mal em terceiros andares
sem elevador de onde os meus tios regressavam à socapa risonhos de juventude
recuperada, enquanto as fêmeas do clã, na igreja, se dirigiam para a comunhão
de olhos fechados e língua de fora, camaleões prontos a devorarem os mosquitos
das hóstias numa gula mística. De vez em quando, a meio da refeição, se o
psiquiatra, então garoto, mastigava de boca aberta ou pousava os cotovelos na
toalha, o avô apontava para ele o indicador definitivo e profetizava
cavernosamente: hás-de acabar nas mãos da cozinheira como o peru.
E o tremendo silêncio que se seguia avalizava com o seu selo branco a
iminência dessa catástrofe. Responda, ordenou o colega. Vê-se a comer à mesa
com um carpinteiro? O médico tornou a ele no esforço de quem ajusta a imagem de
um microscópio desfocado: do alto de uma pirâmide de preconceitos quarenta
gerações burguesas contemplavam-no. Porque não?, disse ele desafiando os
cavalheiros de pêra e as damas de abundante busto boleado ao torno que se
tinham trabalhosamente cruzado entre si, num crochet complexo, atrapalhados
pelos suspensórios e pelas barbas do corpete, para produzirem, ao cabo de um
século de deveres conjugais, um descendente capaz de revoltas tão impensáveis
como a de uma dentadura postiça que pulasse do copo de água em que sorria à noite
para morder o próprio dono. O colega recuou dois passos, siderado: porque não?
Porque não? Homem, você é um anarquista, um marginal, você pactua com o Leste,
você aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Que sabe este tipo de África,
interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do
patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo
reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos
da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos
administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que
lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o
exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este
animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela Pide, das
minas a florirem sob as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade,
do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Como sempre que se recordava de
Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na
veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pelo rádio para o destacamento onde se achava,
primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria
improvisada debruçado para a agonia dos feridos, sair exausto a porta deixando
o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão
de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro. Este não é o meu
país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras
do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia
paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de
humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris
verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir
comestível na almofada. Nomes mágicos: Cuíto-Cuanavale, Zemza do Itombe,
Narriquinha, a Baixa do Cassanje coberta pelas altas pestanas dos girassóis em
manhãs limpas como ossos de luz, bailundos empurrados a pontapé para as
fazendas do norte, São Paulo de Luanda imitando o Areeiro encostado à valva da
baía. Que sabe este palerma de África, interrogou-se o psiquiatra, para além
dos cínicos e imbecis argumentos obstinados da Acção Nacional Popular e dos
discursos de seminário das botas mentais do Salazar, virgem sem útero mascarada
de homem, filho de dois cónegos explicou-me uma ocasião uma doente, que sei eu
que durante vinte e sete meses morei na angústia do arame farpado por conta das
multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assisti ao
vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha
na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no
topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Jingas, parti e regressei
com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África? A imagem da
mulher à espera dele entre as mangueiras de Marimba pejadas de morcegos
aguardando o crepúsculo apareceu-lhe numa guinada de saudade violentamente
física como uma víscera que explode. Amo-te tanto que te não sei amar, amo
tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos
perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que
a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros
de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo
dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que
não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que
não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego
espera os olhos que encomendou pelo correio». In António Lobo
Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS,
Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT