terça-feira, 24 de setembro de 2019

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Gago Coutinho, a trezentos quilómetros ao sul do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Compreenda-me: pertencemos a uma terra em que a vivacidade faz as vezes do talento e onde a destreza ocupa o lugar da capacidade criadora, e creio com frequência que não passamos de facto de débeis mentais habilidosos consertando os fusíveis da alma à custa de expedientes de arame. Inclusive o estar aqui consigo talvez não passe de um expediente de arame que me salve da maré baixa de desespero que me ameaça, desespero de que não conheço a causa, percebe, e que à noite me enrola no visco do seu lodo, me afoga de aflição e de receio, me molha o beiço de cima de um bigode de suor, me faz tremer os joelhos um contra o outro em castanholas de dentadura postiça de porteiro adormecido. Não, a sério, o crepúsculo chega e o coração acelera-se, palpo-o no pulso, as vísceras comprimem-se, a vesícula dói-me, os ouvidos zumbem, qualquer coisa de indefinível e prestes a romper-se palpita, tenso, no meu peito: um dia destes, o porteiro dá comigo estendido nu no chão da casa de banho, um fio de pasta de dentes e de sangue ao canto da boca, as pupilas subitamente enorme contemplando nada, a cheirar mal, sem cor, inchado de gases. Você lê no jornal, não acredita, volta a ler, verifica o nome, a profissão, a idade, e passadas duas horas esqueceu-se e virá aqui, como de costume, ancorar o seu silêncio numa enseada de copos, tilintar em cada mínimo gesto as pulseiras indianas que recordam uma Londres mítica perdida no nevoeiro do passado, na época em que Bod Dylan falava e as pernas das vendedoras do Selfridges eram quase tão atraentes como os sorrisos dos polícias.
Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.

Gago Coutinho, a trezentos quilómetros ao sul do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e fitas ridículas, o posto da PIDE, a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos; uma vez por semana eu sacudia o badalo do sino de capela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente desertas, no silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, larvas de Bosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos de remédio. O senhor Jonatão, o enfermeiro negro da delegação de saúde nominal, que corria constantemente como os chineses do Tim-Tim, distribuía as pastilhas na majestade macabra de um ritual eucarístico para desenterrados vivos, alguns dos quais, já cegos, voltavam para ninguém as órbitas desabitadas, reduzidas a uma névoa azul-húmida de muco repugnante. Miúdos sem dedos, afligidos de moscas, agrupavam-se numa pinha muda de espanto, mulheres de feições de gárgula segredavam-se diálogos que os céus da boca em ruína tornavam numa pasta de gemidos, e eu pensava na ressurreição da carne do catecismo, como pedaços de tripas e erguerem-se dos buracos dos cemitérios num despertar vagaroso de ofídeos. Um pouco, percebe, como se toda esta gente pálida que cochicha curvada em atitudes de feto, enrolando-se mutuamente em torno das nucas os tentáculos sem ossos dos braços, saísse de roldão a porta do bar, não para a noite domesticada e cúmplice da Lapa, feita do ressonar conjunto de bassets e de condessas, mas para um dia excessivo iluminado pelo sol vertical das salas de operação dos ringues de boxe, que revelasse sem piedade as olheiras, as rugas, as pregas de cansaço, a murchidão dos seios, as expressões vazias que nenhum cognac mobila. O senhor Jonatão, regiamente instalado numa cadeira desconjuntada, absolvia de tintura de iodo as feridas que lhe ofereciam pincelando-as de extremas-unções expeditivas, inúteis esconjuros contra a presença da morte, e eu circulava ao acaso de quimbo em quimbo assustando velhas esqueléticas acocoradas à entrada das palhotas, e de que as saias, demasiado largas para as suas ancas de ícones, se assemelhavam às mangas de papel que embrulham as palhinhas de refresco. E havia o cheiro de decomposição de mandioca a secar nas esteiras, a humidade, que se farejava no ar, da chuva que crescia, excrementos secos como os cagal… de cartão do Entrudo, ratos obesos remexendo o lixo, a chana horizontal ao longe atravessada por um rio sinuoso e estreito como uma veia da mão, e os morcegos a aguardarem o crepúsculo nos vestígios de templo de Diana de uma casa de colono, afogada no capim sem cor do esquecimento». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT