jdact
Paris, 3 de Junho de 1940
«(…) Ao voltar-se, a minha prima
viu a ponta acesa de um charuto. Era Madre Mary,. Nascida há sessenta e quatro
anos em Montreal, no Canadá francês, chamava-se Mary em vez de Marie, uma
imposição do pai anglófilo e autoritário, que a mãe francófona aceitara antes
de falecer devido a complicações após o parto. Esta orfandade materna da Madre,
bem como a má relação com o pai, gerou em Carol um claro efeito de identificação,
pois também se dava mal com o progenitor e perdera a mãe três anos antes. Não consegues dormir?, perguntou Madre Mary. As
olheiras cavadas da religiosa abafavam os seus famosos olhos verdes e
beliscavam a harmonia de um conjunto ternurento, composto por uma cara arredondada,
umas bochechas fofas e uns lábios grossos. Vem comigo, ordenou. Mal entraram no
gabinete dela, a minha prima reparou nas caixas de papelão abertas, idênticas
às que se enchiam em tempo de mudanças. Inquieta, viu-as repletas de livros, mas
nada perguntou. A freira dirigiu-se à secretária e desdobrou um mapa da Europa,
enquanto dizia ser impossível manter o convento a funcionar, pois as bombas
alemãs iam lançar o pavor nas freiras. Já não queriam ficar em Paris, agora
será impossível.
Carol sentiu uma dor na barriga
ao escutar o anúncio de que em breve iriam evacuar Saint-Sulpice. Permanecer seria
um perigo, declarou a Madre, debruçando-se sobre o mapa e pousando o indicador
da mão direita na Holanda. Após uma curta passa no charuto, deslizou a ponta da
unha e recordou o avanço dos panzers nazis, iniciado com a invasão dos Países
Baixos e complementado com a da Bélgica e, por fim, a de França. A travessia
das Ardenas foi uma manobra de mestre, constatou Madre Mary. A vertiginosa
estratégia alemã encurralara os exércitos britânicos e franceses, obrigados a recuar
até ao canal da Mancha. Estão cercados em Dunquerque há semanas, e os ingleses
tentam resgatar o maior número possível de soldados. Churchill, o novo
primeiro-ministro do Reino Unido, com quem a superiora de Saint-Sulpice sentia
afinidade por gostarem ambos de charutos cubanos, requisitara todas as embarcações
em condições de navegar para salvar as suas desesperadas tropas. Milhares de soldados
tinham regressado a Inglaterra em barcos de recreio ou de pescadores, mas muitos
haviam sido mortos nas praias. Uma desgraça e uma humilhação!, protestou a
religiosa.
Nunca esperara uma vitória nazi
tão fácil e garantiu, desolada, que Dunquerque iria cair no dia seguinte. Bem relacionada
com o que restava do frágil Governo da França, recebera pelo telefone
informações fiáveis: o exército e a armada franceses, esgotados e
desmoralizados, iriam capitular. Resta-nos a Linha Maginot. Os dedos de Madre
Mary sobrevoaram o mapa até pousarem na fronteira entre a França e a Alemanha,
onde, anos antes, nascera uma linha de fortificações destinada a impedir a
invasão nazi. Milhares de canhões franceses apontavam ao inimigo e a propaganda
destilada pelos jornais de Paris garantia uma defesa inexpugnável da pátria,
mas a experiente Madre duvidava. Os nazis estão parados em frente da Maginot há
semanas... Madre Mary nunca se fiara na drôle de guerre, os meses de
espera passiva por combates que não surgiam, geradora nos gauleses da sensação
tola de que aquela farsa jamais se tornaria uma guerra real. Porém, Hitler não
brincava aos discursos. Vão atingir a Maginot onde menos esperamos, intuiu a
Madre superiora de Saint-Sulpice.
Após nova baforada no charuto,
explicou a logística da partida, já impecavelmente organizada, como, aliás,
tudo na sua longa carreira naquela irmandade internacional, iniciada na ilha
Martinica, onde ganhara alguns hábitos peculiares, como o gosto pela sesta,
pelo rum e pelos charutos cubanos; e depois continuada na Argélia, país onde
provara a sua competência mais uma década até lhe ser oferecido o posto mais
elevado da congregação, a direcção do Saint-Sulpice, em Paris, um merecido
prémio para quem fora no colégio uma menina de óptimo e durante a carreira uma irmã
completar, que tanto sabia mandar como obedecer. No presente e sob a sua
supervisão, além de um vasto programa de caridade, encontravam-se um convento
habitado por uma centena de religiosas, a residencial onde Carol dormia e uma
famosa igreja parisiense, diariamente aberta ao público». In Domingos Amaral, A Bicicleta
que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT