quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa. «Tenho fé no Senhor, e amarás um cavaleiro. Tremerão os alicerces do convento. Que o cavaleiro corra do convento ao bordel…»


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«(…)
Gabrielle de Strées
Amante de Henrique IV, morreu em 1599. Sabe-se que ela tentou casar com o rei. Estava grávida pela quarta vez, e vivia na casa de Zamet, famoso homem da finança... Quando passeava no jardim, teve um grave ataque de coração. Passou uma má noite, e no dia seguinte foi acometida de tão assustadoras convulsões que ficou completamente negra e a sua boca torceu-se tanto que ficou na nuca. Expirou no meio de grandes tormentos e horrorosamente desfigurada... Várias pessoas atribuíram ao diabo este acto caridoso. Diziam que o diabo a estrangulara para evitar um escândalo e mais incómodos.

E o que faremos, madre Abadessa, que faremos?
Não houve pão para nós à mesa dos homens.
Se todos os corpos fossem para casamento, baixaria
A valorização do dinheiro, equilibra-se a procura
Com o convento, enfeita-se no bordel o tédio
Para uso. Sem senhores, nem cavaleiros, nem
Bordel, nem convento. Os homens
Dividem-se em homens
E senhores. Mas das mulheres todos os homens
São senhores. Nas casas
De senhores, e homens,
E cavaleiros, damos-lhe o sentido porque opostamente
Se definem. Damos-lhe o alicerce e a espessura; fora
Destas casas erraremos. Nenhuma casa
É nossa. Ninguém é nosso irmão ou irmã. De irmandade
Só o convento. De solidariedade
Ninguém, casadas e vendidas de nós próprias.
Não houve pão para nós à mesa dos homens.

Cecília
Pelos meados do século dezasseis, uma mulher chamada Cecília atraiu as atenções em Lisboa. Possuía a arte de modular a sua voz de tal forma que esta parecia sair do seu cotovelo, às vezes, outras vezes dos seus pés, ou ainda de um sítio que seria impróprio nomear. Ela mantinha uma conversa com um ser invisível..., que respondia a todas as suas perguntas. A mulher foi reputada de bruxa e de possessa do diabo; contudo, como graça especial, em lugar de ser queimada, foi apenas exilada para sempre na ilha de S. Tomé, onde morreu em paz.

E o que faremos, Madre Abadessa, que faremos?
Dir-te-ei que faremos com corpo
E com cavaleiro. Nossa paixão será o corpo
E exercício o mundo, e objecto
O cavaleiro. Nosso corpo forte
Ao cavaleiro daremos, à noite, mas o corpo
Do cavaleiro tomaremos. A troca
Será rompida na madrugada.
Diremos Cavaleiro, quero o meu corpo para que eu possa
Seguir o meu dia. Chamar-te-ão
Amazona. Mas não corras
O mundo até ao inferno. No convento
Amarás o cavaleiro. E disso darás testemunho
E pedirás justiça. Na casa de cavaleiro marido
Amarás cavaleiro amante. E disso darás
Testemunho, e pedirás justiça
E dar-te-ão convento. No bordel dirás
Tenho fé no Senhor, e amarás
Um cavaleiro. Tremerão os alicerces
Do convento. Que o cavaleiro corra
Do convento ao bordel, e daí
À sua casa, sem nunca te encontrar
A ti fugida na tua paixão».

In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT