terça-feira, 10 de setembro de 2019

Cartas Vermelhas. Ana Cristina Silva. «Não posso nem quero converter em destroços verdades de que toda a vida julguei estar segura. Vi demasiados homens morrerem em nome da revolução…»

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«De tão só continuas rapariga
violentada por uns inventada por outros
porém amante mãe amiga
erva sadia de milhões de potros

tu nunca nos traíste e se caíste
o mal nunca foi teu o mal foi nosso
deste sul deste poço
desta cova osso buco
deste país pescoço
com orelhas de muco

não oiças não te iludas não te vendas
às rendas das aranhas. Tens no sangue
as invencíveis teias das piranhas»
Poema de Ary dos Santos


Berlim
«Deixei-te em Moscovo quando tinhas quatro anos e agora tens vinte e sete. No meu espírito, o factor tempo não consegue prescindir dos seus elementos de assombro. Esteve a nevar. Vê-se do comboio. Sobre a neve caída existe uma névoa de imagens a pulsar. Os meus olhos afundam-se nesse embaciamento branco até esmorecer a luz de todo o olhar. Depois, observando o que se avista da janela, fixo-te nitidamente, em todas as idades em que não te vi crescer. Derrubadas que foram as barreiras da claridade, deixo a teia do passado cair sobre mim e faço por acreditar que o enigma do tempo persiste como um fenómeno puramente exterior, ou mesmo uma falácia. A lucidez não se deixa aniquilar dessa forma obscura. Não estás lá fora, minha filha, mas dentro de mim. Sei que os remorsos me pertencem e uma espécie de pranto silencioso se torna inconsolável à medida que o comboio atravessa a Alemanha e me afasta de ti.
Estes sentimentos seriam inconfessáveis aos amigos de Lisboa. Nos meios que frequento, sou conhecida pelas minhas convicções e não há ninguém que não me identifique como uma comunista. Nas festas, nos convívios, os meus lábios parecem bastante menos cansados do que realmente estão. Em público, quando pretendo defender uma posição, sou intransigente. Mas a mulher que os outros têm na imaginação é muito mais excessiva do que a que existe de facto. Nas suas fantasias, perduro no rasto de uma figura quase mítica, marcada pelo seu itinerário revolucionário. Sinto a aprovação dos meus amigos. Para as pessoas desse círculo, não existe melhor definição de uma eleita do que uma personagem que viveu circunstâncias venturosas e vicissitudes trágicas. Encaixo perfeitamente na categoria. Elas ignoram quase tudo de mim, sobretudo como esse passado, o meu próprio passado, persiste tanto ou mais do que o presente, como um quarto selado, escondido sob uma parede falsa.
Talvez porque, se pensar no que ficou para trás, o meu coração deixará de bater. Às vezes, quando me debruço sobre as opções que fiz, parece-me que as minhas convicções comunistas poderão desfazer-se em virtude da força com que ainda as fixo ao espírito. Não posso nem quero converter em destroços verdades de que toda a vida julguei estar segura. Vi demasiados homens morrerem em nome da revolução, perdi a tua infância. Isso só por si contém um preço demasiado elevado para que simplesmente possa abdicar da necessidade de uma mudança social. Além do mais, as injustiças não se extinguiram, as leis da infâmia capitalista não puseram de lado a ganância e a necessidade de aperfeiçoar a condição humana não desapareceu. Quiçá, sob a rigidez dos meus ideais, esconde-se um vaivém violento de emoções que nem sempre sou capaz de decifrar. Em certas alturas, parece-me entrever, por entre a corrente das palavras com que domino, como uma actriz segura, os espaços sociais de Lisboa, um silêncio infinito para o qual tenho medo de me retirar. Esse silêncio és tu e a memória da tua figurinha infantil.
És aquele fantasma que, com os anos, se foi sobrepondo à penumbra. Não restam dúvidas de que a neblina que se expande pelo horizonte não é formada por minúsculas gotas de água, mas por pensamentos não completamente desenvolvidos, na realidade reprimidos, cheios de vislumbres de ti em criança. Inúmeras lembranças sobrepostas, uma quantidade enorme de acontecimentos semi-recordados, vêm ao de cima e transbordam, sem se assemelharem ao desenrolar de uma história simples ou às circunstâncias de uma vida comum». In Ana Cristina Silva, Cartas Vermelhas, 2011, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-807-0.

Cortesia de OdoLivro/JDACT