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«De tão só continuas rapariga
violentada por uns inventada por outros
porém amante mãe amiga
erva sadia de milhões de potros
tu nunca nos traíste e se caíste
o mal nunca foi teu o mal foi nosso
deste sul deste poço
desta cova osso buco
deste país pescoço
com orelhas de muco
não oiças não te iludas não te vendas
às rendas das aranhas. Tens no sangue
as invencíveis teias das piranhas»
Poema
de Ary dos Santos
Berlim
«Deixei-te em Moscovo quando
tinhas quatro anos e agora tens vinte e sete. No meu espírito, o factor tempo não
consegue prescindir dos seus elementos de assombro. Esteve a nevar. Vê-se do
comboio. Sobre a neve caída existe uma névoa de imagens a pulsar. Os meus olhos
afundam-se nesse embaciamento branco até esmorecer a luz de todo o olhar. Depois,
observando o que se avista da janela, fixo-te nitidamente, em todas as idades
em que não te vi crescer. Derrubadas que foram as barreiras da claridade, deixo
a teia do passado cair sobre mim e faço por acreditar que o enigma do tempo persiste
como um fenómeno puramente exterior, ou mesmo uma falácia. A lucidez não se deixa
aniquilar dessa forma obscura. Não estás lá fora, minha filha, mas dentro de mim.
Sei que os remorsos me pertencem e uma espécie de pranto silencioso se torna inconsolável
à medida que o comboio atravessa a Alemanha e me afasta de ti.
Estes sentimentos seriam inconfessáveis
aos amigos de Lisboa. Nos meios que frequento, sou conhecida pelas minhas
convicções e não há ninguém que não me identifique como uma comunista. Nas festas,
nos convívios, os meus lábios parecem bastante menos cansados do que realmente estão.
Em público, quando pretendo defender uma posição, sou intransigente. Mas a mulher
que os outros têm na imaginação é muito mais excessiva do que a que existe de facto.
Nas suas fantasias, perduro no rasto de uma figura quase mítica, marcada pelo seu
itinerário revolucionário. Sinto a aprovação dos meus amigos. Para as pessoas desse
círculo, não existe melhor definição de uma eleita do que uma personagem que viveu
circunstâncias venturosas e vicissitudes trágicas. Encaixo perfeitamente na
categoria. Elas ignoram quase tudo de mim, sobretudo como esse passado, o meu próprio
passado, persiste tanto ou mais do que o presente, como um quarto selado,
escondido sob uma parede falsa.
Talvez porque, se pensar no que ficou
para trás, o meu coração deixará de bater. Às vezes, quando me debruço sobre as
opções que fiz, parece-me que as minhas convicções comunistas poderão desfazer-se
em virtude da força com que ainda as fixo ao espírito. Não posso nem quero
converter em destroços verdades de que toda a vida julguei estar segura. Vi demasiados
homens morrerem em nome da revolução, perdi a tua infância. Isso só por si contém
um preço demasiado elevado para que simplesmente possa abdicar da necessidade
de uma mudança social. Além do mais, as injustiças não se extinguiram, as leis
da infâmia capitalista não puseram de lado a ganância e a necessidade de aperfeiçoar
a condição humana não desapareceu. Quiçá, sob a rigidez dos meus ideais, esconde-se
um vaivém violento de emoções que nem sempre sou capaz de decifrar. Em certas alturas,
parece-me entrever, por entre a corrente das palavras com que domino, como uma
actriz segura, os espaços sociais de Lisboa, um silêncio infinito para o qual
tenho medo de me retirar. Esse silêncio és tu e a memória da tua figurinha
infantil.
És aquele fantasma que, com os anos,
se foi sobrepondo à penumbra. Não restam dúvidas de que a neblina que se expande
pelo horizonte não é formada por minúsculas gotas de água, mas por pensamentos não
completamente desenvolvidos, na realidade reprimidos, cheios de vislumbres de ti
em criança. Inúmeras lembranças sobrepostas, uma quantidade enorme de acontecimentos
semi-recordados, vêm ao de cima e transbordam, sem se assemelharem ao
desenrolar de uma história simples ou às circunstâncias de uma vida comum». In Ana
Cristina Silva, Cartas Vermelhas, 2011, Oficina do Livro, 2011, ISBN
978-989-555-807-0.
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