jdact
Medina.
Janeiro de 627
«Quando
entrei a cavalo em Medina, agarrada à cintura de Safwan, o escândalo soprava
sob o vento errante. Os meus vizinhos tinham-se apressado para as ruas como águas
tempestuosas a inundar um wadi. As crianças, boquiabertas, juntavam-se em
grupos para me apontar. As mães apertavam-nas contra as saias e fingiam desviar
os o1hos. Homens cuspiam na poeira e murmuravam críticas. A boca do meu pai tremeu
como uma lágrima prestes cair. Aquilo que viam: o meu lenço caído até aos ombros,
a cabeça descoberta. Cabelo solto a açoitar-me o rosto. A mulher do Profeta de Deus
a abraçar outro homem. Aquilo que não conseguiam ver: os meus sonhos infantis despedaçados
aos meus pés, pisados por uma realidade tão dura e cruel como se por cascos de cavalos.
Deixei que as pálpebras se me fechassem. para evitar o meu reflexo nos olhares
da umma, a minha comunidade. Lambi os 1ábios estalados, a sentir o sal e
o sabor pungente da minha desdita. A dor fazia com que o meu estômago se contorcesse
como mãos fortes a torcerem a água da roupa acabada de lavar, só que eu já estava
seca. A minha língua pendia como a de um lagarto estirado ao sol. Encostei a face
ao ombro de Safwan, mas o trotar do cavalo fez com que osso batesse contra osso.
Al-zaniya!, gritou alguém. Adúltera!
Semicerrei os olhos. Membros da
nossa umma ou apontavam-me dedos e gritavam, ou abriam os braços em
boas-vindas. Vi outros, Hipócritas, a troçarem e a exibirem os dentes sujos. Os
ansari, os nossos ajudantes, permaneciam silenciosos e circunspectos. Milhares
bordejavam a rua, a inalar a nossa poeira em golfadas bruscas. A fixarem-me como
se eu fosse uma caravana a brilhar de tesouros, e não uma rapariga de catorze anos
queimada pelo sol. O cavalo parou, mas eu continuei; por cima do seu flanco, primeiro
de cabeça e para os braços de Maomé. De novo para o domínio do meu marido, e a suspirar
de alívio. Quase fora destruída ao tentar forjar o meu próprio destino, mas o
amor dele tinha o poder da cura. A sua barba espessa almofadou a minha face, acariciou-me
com sândalo. Senti o cheiro a miswak na sua respiração, limpa e cortante
como um beijo. Graças a al-Lah que chegaste a casa em segurança, minha A'isha, murmurou.
A multidão
reunida moveu-se ruidosa, a causar-me um formigueiro na espinha. Ergui a cabeça
pesada para olhar. Umar atravessava-a, a vociferar carrancudo. Era um dos
conselheiros e amigo de Maomé, mas não era amigo de mulheres. Por al-Lah, onde é
que estiveste? Porque estavas sozinha com um homem que não é teu marido? As acusações
dele chicotearam-me como o vento por entre a multidão, a transformar fagulhas
em chamas. Al-zaniya!, alguém voltou a gritar. Baixei-me como se a palavra
fosse uma pedra atirada. Não é de admirar que A’isha rime com fahisha,
meretriz! As pessoas riram-se, e passado pouco começaram a entoar: A’isha,
fahisha! A’isha, fahisha!» In Sherry Jones, A Jóia de Medina, 2008,
Casa das Letras, Oficina do Livro, 2009, ISBN original 978-0-8253-0518-4, ISBN
978-972-421-891-3.
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