quinta-feira, 27 de março de 2014

Ensaios. A História de Portugal. Vitorino Magalhães Godinho. «Na política, aos acontecimentos trepidantes antepor as bases de organização (não apenas legal mas também de facto) e as relações de forças em presença, tentando surpreender quando tais alicerces se modificam»

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A Divisão da História de Portugal em períodos
«(…) A história económica brasileira poder-se-ia dividir nos seguintes ciclos:
  • 1.º Ciclo do pau-brasil, com os comércios ancilares de animais e algodão, pré-colonial, até cerca de 1530;
  • 2.º Ciclo do açúcar, dominante na 2.ª metade do século XVI e no XVII, tendo como actividades ancilares o tabaco e a criação de gado, esta última responsável pela penetração no sertão e a grande integradora da unidade nacional brasileira;
  • 3.º Ciclo de mineração, do ouro e diamantes, que marca com o seu cunho o século XVIII;
  • 4.º Ciclo do café, séculos XIX e XX, cedendo hoje o lugar à civilização industrial (Afonso Arinos Melo Franco, Síntese da História económica do Brasil, Rio de Janeiro, 1933).
É evidente que se segue o figurino cortado por Lúcio Azevedo, mas a sua periodização cíclica do Portugal económico de Antigo Regime não oferece a mesma nitidez de recorte. Depois da medieva Monarquia agrátia, estruturalmente definida como um quase feudalismo num país de lavradores que produzem azeite, cera, cortiça, mel, vinho e peles, cevada e trigo, intercala-se uma Jornada de África, arca onde tudo se mete mas que é essencialmente um Ciclo dos escravos, passa-se ao ciclo da pimenta ligado à Índia, e isto antes do metal amarelo da Guiné, Mina e Monomotapa agrupado num Primeiro ciclo do ouro, a que sucede o Império do açúcar seguido de uma Idade de ouro e diamantes. Assim, ciclo parece designar essencialmente um sistema de actividades constelando-se em volta de um produto e processando-se da génese ao ocaso, de modo a dar o tom dominante a toda uma economia. Mas na mesma época podem coexistir dois ou mesmo mais ciclos, no século XVI o dos escravos, o da pimenta, o primeiro do ouro e até já o começo do do açúcar; no século XVIII a idade do ouro e diamantes, ou melhor, o segundo ciclo do ouro, agora brasileiro e combinado aos diamantes, não esgota a realidade histórica-económica, um outro capítulo completa o quadro Sob o signo de Methuen. Tanto quanto de periodização, o ciclo serve pois de arrumação de matérias segundo um princípio de lógica interna de desenvolvimento. Aliás, em Lúcio Azevedo a concepção cíclica está sobretudo no obsessivo retorno de uma falência a cada ciclo apenas adiada.
Aplicando à assás imprecisa concepção de ciclo de Lúcio Azevedo a precisa noção de efeito dominante de François Perroux, Frédéric Mauro propõe manter aquela entendendo-a de forma que o ciclo do açúcar seria a economia em que o açúcar exerceria o efeito de dominação: Produto dominante, visto que o crescimento do seu comércio traz consigo a prosperidade geral, e o seu declínio um declínio geral, ao passo que a inversa não é verdadeira: nesta irreversibilidade é que, como é sabido, reside o efeito de dominação. Escravos, material dos engenhos, consumo de sal, de vinho, de produtos manufacturados, tudo é comandado, dominado pelo açúcar. Mas não era esta, no fundo já a concepção de Afonso Arinos, talvez até do próprio Azevedo agora melhor definida e caracterizada? Mauro aproxima-se porém de uma outra concepção, a de complexos histórico-geográficos, ao introduzir a distinção; devida a Perroux, de zonas dominantes e zonas dominadas. Convém reservar a designação de ciclo aos processus de recurrência em que o movimento se fecha, retornando ao estádio inicial, depois de percorrer sempre as mesmas fases. Por outro lado, a estruturação da economia sob a dominância de um factor (feixe de actividades ligadas a um produto ou pequeno conjunto de produtos interconexos) só pode considerar-se modelo historicamente válido num reduzido número de casos: precisamente os das economias coloniais caracterizadas pela monocultura para exportação; é o que em boa parte acontece no Brasil com a sucessão pau brasil-açúcar-ouro-café. Por isso mesmo há que integrá-los em noções operatórias de maior generalidade; esse seu carácter só se afirma porque fazem parte de totalidades mais vastas, não passam de aspectos regionais delas.
No estado actual da pesquisa no nosso País não é possível assentar sem arbitrariedade uma divisão da história de Portugal em períodos. O critério foi luminosamente definido por Herculano há um século e um quarto; há que repensá-lo, evidentemente, e aperfeiçoá-lo à luz da ferramenta moderna de estrutura e complexo histórico-geográfico, mas a linha mestra está traçada. Que cabe fazer? Estudar a sociedade portuguesa através dos tempos, não apenas nas suas formas jurídicas mas sim na sua existência colectiva tal como é na realidade, procurando rastrear as relações fundamentais que definem estruturas sucessivas; desenhar as correspondentes configurações espaciais, numa perspectiva de geografia dinâmica que dê as proporções de forças em acção, suas áreas de incidência, vectores de articulação ou transformação; na história cultural, averiguar das maneiras de sentir e pensar colectivas (globais ou de grupo), de modo a caracterizar mentalidades e grandes revoluções psicológicas. Na política, aos acontecimentos trepidantes antepor as bases de organização (não apenas legal mas também de facto) e as relações de forças em presença, tentando surpreender quando tais alicerces se modificam. Há que determinar os próprios ritmos do tempo tal como os homens o vivem em cada época e dele têm consciência. É de esperar, aliás, que os tempos das estruturas, das conjunturas e dos acontecimentos não coincidam, e portanto de admitir mais de uma periodização consoante o ponto de vista em que nos colocarmos». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.

Cortesia LSdaCosta/JDACT