quinta-feira, 13 de março de 2014

Oliveira Martins. As contradições da Geração 70. Óscar Lopes. «… os problemas de Oliveira Martins são para nós os da sua geração; Oliveira Martins é para nós uma consciência que reflecte sobre o que se pensava antes dele e sobre o que fazia com que antes dele se pensasse de uma determinada maneira»

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«(…) É claro que certas pessoas preferiam outra liberdade: a de sonhar, dormir talvez; e essas, contra Oliveira Martins continuarão a explicar, por exemplo, o obscuro da constituição histórica de Portugal por uma coisa ainda mais obscura, a lusitaneidade; e censurarão no historiador aquilo que justamente o torna interessante, que é a radicação no passado nacional dos problemas da sociedade sua contemporânea, a suspeita de que os portugueses se têm batido historicamente, com sorte nem sempre feliz, contra o mesmo desnivelamento social humano de que é preciso resgatá-la agora (agora, em 1885; em 1984, e agora 2012, e agora 2013…). Nós queremos libertar-nos das nossas condições, vendo-as de frente, deixar a outras pessoas aquela espiritualidade do avestruz que evita as realidades molestas enterrando a cabeça na areia. Ora (insistindo), se nos interessa o homem histórico, o homem do seu tempo, o homem sempre diferente, progressivo, o homem que faz experiência, em vez de homem de sempre, o homem-avestruz que põe a cabeça fora do mundo, os problemas de Oliveira Martins são para nós os da sua geração; Oliveira Martins é para nós uma consciência que reflecte sobre o que se pensava antes dele e sobre o que fazia com que antes dele se pensasse de uma determinada maneira. Com Oliveira Mútins libertamo-nos, portanto, de velhas misérias, não pelo sonho nacionalista mas pela consciência inteligentemente patriótica que nos reclama uma acção. E é com este Oliveira Martins que podemos reaprender, não o seu ambíguo cesarismo à Bismark, não o seu sonho ibérico, e o seu antifeminismo, não as soluções inevitavelmente ultrapassadas pela segunda revolução industrial da turbina eléctrica e do motõr de explosão, mas certas verdades mais elementares, como esta, que lhe inspira o projecto de lei do fomento rural, toda a sua obra de economista e o melhor da sua obra de historiador: a Nação não é um substantivo abstracto, mitologicamente maiusculado, com insígnias drapejantes aos ventos passadistas ao gosto de Ramalho, TeóÍilo e do Estado Novo; a Nação só ganha em dignidade se, de substantivo próprio e abstracto, se fizer um substantivo comum e colectivo.

A carreira literária de Oliveira Martins desdobra-se paralelamente à de um grupo, que pode considerar-se intelectualmente emancipado pelo início da década de 1870, e até, podemos precisar melhor: desde 1871. É claro que o grito contra os filisteus fora já erguido em Coimbra seis anos antes, por Antero e Teófilo. Mas em 1865 havia mais uma vontade de revolta do que uma consciência de fins; Antero e Teófilo vieram sobretudo afirmar, em 1865, a galhardia de uma independência mental que fez pela primeira vez escândalo, mas não era nova em Coimbra, nem no Porto, nem da parte deles, nem de outros até já consagrados, como João de Deus; e vieram, sobretudo, decorar com nomes alemães (Hegel, Herder, Heine, Goethe) e de intermediários franceses (Vera, Michelet, Quinet, Proudhon) a mesma metafísica do Progresso Indefinido e da Imanência, o mesmo jacobinismo folclorista, o mesmo socialismo federalista e utópico que tinham emergido, aqui e além, desde meados de 1850, em Soares Passos, Mendes Leal, José Estêvão, Tomás Ribeiro, Henriques Nogueira.
Sim, aqueles que hoje nos parecem românticos retardatários foram, afinal, os iniciadores da grande geração iconoclasta. Com o Firmamento, de Soares de Passos, a poesia lamartineana da emoção cósmica deriva de Herculano para as Odes Modernas de Antero; e o culto pessimista de Camões, como símbolo patriótico e libertário, chegou de Garrett, por intermédio de Passos e Mendes Leal, a Teófilo, que abrirá com o terceiro centenário camoniano o precedente das comemorações pátrias retrospectivas, sucedâneo moderno do sebastianismo. De resto, ideologicamente, Teófilo Braga foi o nosso mais puro romântico. Por outro lado, o republicanismo federal em que são correligionários Teófilo Braga e Antero de Quental, até que este se decide por novos rumos, apontados por Oliveira Martins, tinha feito escola desde 1851 com Henriques Nogueira». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Reflexões sobre Herculano como polemista, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.

Cortesia de Caminho/JDACT