sábado, 1 de março de 2014

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «… cantava-a só para se ouvir, e talvez fosse então sincero, por saber-se a natureza que tinha, e porque pensava intimamente que aos maus tudo corre bem e aos bons tudo corre mal… Irra!»

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«(…) Que bela figuraça. As anquinhas firmes, o peito enfunado como pombo de garbo ou vela de nau espicaçada ao vento, pernas torneadas, longas, cara de tracinhos miúdos de muito bom e belo desenho e recorte, e depois o nariz perfeito e sob este o bigode fino e sempre muito bem aparado, os cabelos de caracóis, assim para o claro, e entre todos os dotes o da voz, uma voz de grande efeito, que usava para os cantares das coisas de coração quando se dirigia às damas que, todas, suspiravam por ele. Aliás, Júlio só tinha três interesses: trovar, cantar canções de moda, gozar com elas e fazer com elas que todos gozassem muito; as artimanhas airosas do jogo da péla, onde se distinguia muito pelas habilidades; e coitar, uma arte que praticava muito, com muita sabedoria, e que lhe dava para viver folgadamente. Era má rês, de má catadura e maus princípios, embora desdissesse na figura o mau feitio que encerrava. Era assim Júlio, tornado dom por favores de princesa. Era assim, um femeeiro de raça.
Dizia-se dele que já tinha tido em sortes de leito todas as damas da corte católica, mesmo as que se benziam mais, penetrava-lhes no quarto, no peito e no corpinho em clandestinas noutes, trepava varandas e juízos, punha-se nelas e deixava-as encantadas, e saía depois como uma sombra sem remorsos, já a pensar na que se seguiria. Os do Santo Oficio (maldito) andavam de olho nele, embora não se preocupassem, pois não fazia coisas de bruxo, não era judeu nem mouro, e deflorar damas ou trespassá-las de amores não é nestes tempos o maior crime de desrespeitar Deus, e ao que parecia nenhuma dama se queixava e nenhum fidalgo se quisera até então tomar de vinganças, e coitos em corte com este e aquela é coisa meio comum a que se deve fazer vista grossa. Júlio coitava e seguia em boa vida airada, cantava pelo meio, tinha energias para tudo, e era uma simpatia, até a rainha zelava por ele e o rei gozava ao ouvi-lo cantarolar, e a princesa dava-lhe sortes e favores, não era por isso necessária a fogueira, nem mesmo a ralação dos muito bons cuidadores da moral e bons costumes.
Estava Júlio a cantar uma cantiga antiga, dessas que passaram de moda mas que ainda são uso por serem antigas e airosas, se bem que esta não falava de amores, Júlio cantava-a só para se ouvir, e talvez fosse então sincero, por saber-se a natureza que tinha, e porque pensava intimamente que aos maus tudo corre bem e aos bons tudo corre mal e que há grande inconveniente em dizer a verdade nestes tempos em que uma boa mentira, mesmo nada tendo de piedade, serve muito mais altos valores que uma verdade irredutível:

- Ca vej'eu ir melhor ao mentireyro
c'ao que drz verdade ao seu amigo;
e por auesto o jur'e digo,
que já mays nunca seja verdadeyro,
mais mentirey e firmarey log'al:
e assi guarrei como cavaleyro.

A tristeza é que Júlio não cantava isto como sátira trovadoresca, estava firmemente convicto de que a mentira tem valor dobrado da verdade. Estava assim cantando em sinceridade, enquanto tratava seus bigodes famosos que às damas arrepiavam e que até inveja criavam entre fidalgos machos. Bateram-lhe à porta e ele calou-se. Foi demandar do que lhe queriam e viu, embuçada, uma ara da princesa. - Vinde. Júlio não foi logo. Puxou a aia para dentro de casa e repenicou-lhe beijos e passou-lhe ambas mãos por baixo do embuço e das vestes, e a aia sentiu-se agradecida da sua sorte, suspirou amiúde, e, depois de muito contentada, lá explicou ao que vinha e ao que vinha era que a princesa queria dar-lhe, em pessoa, um recado muito grande. Júlio repôs os calções que tirara, passou escova em cabelos de cabeça e de buço, alindou-se e seguiu a aia cantarolando». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CL/JDACT