Nota
«Terceira esposa de D. Manuel, Leonor de Áustria reinou apenas alguns meses
em Portugal: chegada ao reino em Novembro de 1518, regressava a Castela no mês de Maio de 1523, para não mais voltar. A história desta curta estada, que acabou
por ser pouco marcante, ganha toda a sua dimensão se a reposicionarmos numa
biografia total desta princesa do Renascimento cujo interesse se situa a vários
níveis. O estudo da sua vida de mulher, se responde a uma preocupação
biográfica clássica, permite ter em conta o tempo da infância e da juventude, e
o papel considerável que este tempo desempenhou na sua vida de adulta, em
especial na compreensão das relações excepcionalmente fortes com o seu irmão
mais novo, o imperador Carlos V. A questão do amor materno, no centro do drama
pessoal de Leonor, o qual se desenrola em Portugal, onde dá à luz e depois tem
de abandonar, por questões de política internacional que a ultrapassam, o seu único
filho sobrevivente, interpela o historiador sobre a questão afectiva da infância
no Renascimento. E, para lá de uma reconstrução daquilo que foi realmente a
existência de Leonor de Áustria, o
seu estudo ilumina com uma luz nova a questão de uma história mais ampla dos
laços afectivos, que apenas a abordagem de itinerários individuais múltiplos
permitirá compreender melhor.
Leonor de Áustria reinou
sucessivamente sobre dois reinos importantes do Renascimento europeu: foi
primeiro rainha de Portugal e
depois de França e sobreviveu a Manuel I, bem como a Francisco I. Além disso,
na qualidade de irmã mais velha do imperador Carlos V perfilava-se entre os
potenciais sucessores. No entanto, ocupa, enquanto rainha, um lugar de pouca monta
nos livros de História e na memória colectiva... Na própria noite da sua morte,
Luis de Avila y Zuñiga, comendador da Ordem de Alcântara, teria declarado: … que
Deus a ponha no céu, pois era verdadeiramente uma santa inocente, e acredito
que não havia nela mais malícia do que numa velha pomba. Esta imagem, a
da boa Leonor, iria impor-se e
rapidamente encerraria toda a
realidade da pessoa, vindo a ser repetida à saciedade e aceite como verdadeira,
primeiro pelo povo e depois pelos cronistas e pelos historiadores, e isto até
ao século XXI. De facto, Leonor
possuía todas as qualidades que lhe permitiram encarnar a boa rainha, as de uma mulher bela e doce, fiel ao
seu real esposo e repleta de virtudes teológicas, fé, esperança, caridade,
de virtudes cardeais, prudência, justiça, temperança, e de muitas outras
ainda: honestidade, piedade, generosidade, humildade, modéstia, pudor... Encarnação
da ideia da boa rainha, a rainha Leonor viu ser-lhe recusada qualquer outra
dimensão.
Ora, a questão da sua verdadeira personalidade continua a colocar-se:
figura complexa e polivalente, oferece facetas diferentes consoante a perspectiva
a partir da qual for abordada. Apagada, muitas vezes em segundo plano, relegada
para a sombra em comparação com personalidades femininas fortes, como a sua
irmã, Maria da Hungria, Leonor não
se identificou menos que ela com a função real. A partir do momento em que
subiu a um trono, o de Portugal, e até aos seus últimos dias, quando enviava
correspondência a qualquer outra pessoa que não o seu irmão Carlos, a sua irmã
Maria ou os seus esposos, assinava-a com a marca dos soberanos ibéricos: Yo, la Reina, Eu, A Rainha. Ao fazê-lo,
identificava-se fortemente com a função que transcende a pessoa. Mero hábito ou afirmação do seu estatuto?
Na maior parte das vezes sujeita aos ditames dos soberanos, seus parentes, tal
como seus semelhantes, e como as outras mulheres da sua linhagem, não abandonou
por isso o exercício de autoridade e soube comandar e exigir aquilo que
considerava dever-se ao seu estatuto e às suas prerrogativas. Esta consciência,
fortemente identitária, de pertencer a uma dinastia real, fê-la, de acordo com
a confidência do próprio imperador, escolher o rei de França como segundo esposo.
E explica ainda que tenha conservado até ao fim dos seus dias uma mesma
postura, afirmativa, real...
Para além desta, levanta-se, sobretudo, a questão do papel político da
rainha que a historiografia clássica, se não ignorou, pelo menos negligenciou. Escapando
ao mundo fechado da esfera privada e ao lugar que os acordos matrimoniais lhe
atribuíam, Leonor tentou
desempenhar, através da sua posição privilegiada, mas também difícil, e mesmo
desconfortável, de irmã de Carlos V e ao mesmo tempo de esposa de Manuel I e,
mais tarde, de Francisco I, um papel diplomático original, motivado por uma ambição:
fazer ou preservar a paz. Este
aspecto assume um relevo particular quando é rainha de França e, portanto, a
esposa do principal inimigo desse irmão ao qual está ligada por laços
estreitos, fortes e indefectíveis... Neste contexto muito particular, Leonor teve a oportunidade e a vontade
de pôr em acção estratégias que os seus contemporâneos, embaixadores, núncios
ou responsáveis pela política francesa ou imperial, reconheceram, por vezes
ignoraram, e sem dúvida também instrumentalizaram. O que quer que se tenha
passado, a rainha não permaneceu afastada das relações internacionais, e neste
domínio específico tentou, e conseguiu, pelo menos parcialmente, escapar ao
papel que lhe fora atribuído: de espectador passou a actriz, e isso não sem
correr alguns riscos, pois a sua posição de mediadora suscitava muitas
hostilidades... Leonor, a mulher, a
rainha... No momento em que a história do género se impõe como um dos sectores
mais inovadores da ciência histórica, parece pertinente dar a Leonor de Áustria toda a sua dimensão,
considerando a sua biografia como um observatório privilegiado da vida das
princesas e das rainhas do início do século XVI e do seu poder de influência». In Michel
Combet, Rainhas Consortes de D. Manuel I, Leonor de Áustria (1498-1558), C. de
Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4710-6.
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