sábado, 1 de março de 2014

Leonor de Áustria (1498-1558). Michel Combet. «… iria impor-se e rapidamente encerraria toda a realidade da pessoa, vindo a ser repetida à saciedade e aceite como verdadeira, primeiro pelo povo e depois pelos cronistas e pelos historiadores, e isto até ao século XXI. De facto, “Leonor” possuía todas as qualidades que lhe permitiram encarnar “a boa rainha”»

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Nota
«Terceira esposa de D. Manuel, Leonor de Áustria reinou apenas alguns meses em Portugal: chegada ao reino em Novembro de 1518, regressava a Castela no mês de Maio de 1523, para não mais voltar. A história desta curta estada, que acabou por ser pouco marcante, ganha toda a sua dimensão se a reposicionarmos numa biografia total desta princesa do Renascimento cujo interesse se situa a vários níveis. O estudo da sua vida de mulher, se responde a uma preocupação biográfica clássica, permite ter em conta o tempo da infância e da juventude, e o papel considerável que este tempo desempenhou na sua vida de adulta, em especial na compreensão das relações excepcionalmente fortes com o seu irmão mais novo, o imperador Carlos V. A questão do amor materno, no centro do drama pessoal de Leonor, o qual se desenrola em Portugal, onde dá à luz e depois tem de abandonar, por questões de política internacional que a ultrapassam, o seu único filho sobrevivente, interpela o historiador sobre a questão afectiva da infância no Renascimento. E, para lá de uma reconstrução daquilo que foi realmente a existência de Leonor de Áustria, o seu estudo ilumina com uma luz nova a questão de uma história mais ampla dos laços afectivos, que apenas a abordagem de itinerários individuais múltiplos permitirá compreender melhor.
Leonor de Áustria reinou sucessivamente sobre dois reinos importantes do Renascimento europeu: foi primeiro rainha de Portugal e depois de França e sobreviveu a Manuel I, bem como a Francisco I. Além disso, na qualidade de irmã mais velha do imperador Carlos V perfilava-se entre os potenciais sucessores. No entanto, ocupa, enquanto rainha, um lugar de pouca monta nos livros de História e na memória colectiva... Na própria noite da sua morte, Luis de Avila y Zuñiga, comendador da Ordem de Alcântara, teria declarado: … que Deus a ponha no céu, pois era verdadeiramente uma santa inocente, e acredito que não havia nela mais malícia do que numa velha pomba. Esta imagem, a da boa Leonor, iria impor-se e rapidamente encerraria toda a realidade da pessoa, vindo a ser repetida à saciedade e aceite como verdadeira, primeiro pelo povo e depois pelos cronistas e pelos historiadores, e isto até ao século XXI. De facto, Leonor possuía todas as qualidades que lhe permitiram encarnar a boa rainha, as de uma mulher bela e doce, fiel ao seu real esposo e repleta de virtudes teológicas, fé, esperança, caridade, de virtudes cardeais, prudência, justiça, temperança, e de muitas outras ainda: honestidade, piedade, generosidade, humildade, modéstia, pudor... Encarnação da ideia da boa rainha, a rainha Leonor viu ser-lhe recusada qualquer outra dimensão.
Ora, a questão da sua verdadeira personalidade continua a colocar-se: figura complexa e polivalente, oferece facetas diferentes consoante a perspectiva a partir da qual for abordada. Apagada, muitas vezes em segundo plano, relegada para a sombra em comparação com personalidades femininas fortes, como a sua irmã, Maria da Hungria, Leonor não se identificou menos que ela com a função real. A partir do momento em que subiu a um trono, o de Portugal, e até aos seus últimos dias, quando enviava correspondência a qualquer outra pessoa que não o seu irmão Carlos, a sua irmã Maria ou os seus esposos, assinava-a com a marca dos soberanos ibéricos: Yo, la Reina, Eu, A Rainha. Ao fazê-lo, identificava-se fortemente com a função que transcende a pessoa. Mero hábito ou afirmação do seu estatuto? Na maior parte das vezes sujeita aos ditames dos soberanos, seus parentes, tal como seus semelhantes, e como as outras mulheres da sua linhagem, não abandonou por isso o exercício de autoridade e soube comandar e exigir aquilo que considerava dever-se ao seu estatuto e às suas prerrogativas. Esta consciência, fortemente identitária, de pertencer a uma dinastia real, fê-la, de acordo com a confidência do próprio imperador, escolher o rei de França como segundo esposo. E explica ainda que tenha conservado até ao fim dos seus dias uma mesma postura, afirmativa, real...
Para além desta, levanta-se, sobretudo, a questão do papel político da rainha que a historiografia clássica, se não ignorou, pelo menos negligenciou. Escapando ao mundo fechado da esfera privada e ao lugar que os acordos matrimoniais lhe atribuíam, Leonor tentou desempenhar, através da sua posição privilegiada, mas também difícil, e mesmo desconfortável, de irmã de Carlos V e ao mesmo tempo de esposa de Manuel I e, mais tarde, de Francisco I, um papel diplomático original, motivado por uma ambição: fazer ou preservar a paz. Este aspecto assume um relevo particular quando é rainha de França e, portanto, a esposa do principal inimigo desse irmão ao qual está ligada por laços estreitos, fortes e indefectíveis... Neste contexto muito particular, Leonor teve a oportunidade e a vontade de pôr em acção estratégias que os seus contemporâneos, embaixadores, núncios ou responsáveis pela política francesa ou imperial, reconheceram, por vezes ignoraram, e sem dúvida também instrumentalizaram. O que quer que se tenha passado, a rainha não permaneceu afastada das relações internacionais, e neste domínio específico tentou, e conseguiu, pelo menos parcialmente, escapar ao papel que lhe fora atribuído: de espectador passou a actriz, e isso não sem correr alguns riscos, pois a sua posição de mediadora suscitava muitas hostilidades... Leonor, a mulher, a rainha... No momento em que a história do género se impõe como um dos sectores mais inovadores da ciência histórica, parece pertinente dar a Leonor de Áustria toda a sua dimensão, considerando a sua biografia como um observatório privilegiado da vida das princesas e das rainhas do início do século XVI e do seu poder de influência». In Michel Combet, Rainhas Consortes de D. Manuel I, Leonor de Áustria (1498-1558), C. de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4710-6.

Cortesia de CL/JDACT