As Fontes. Vários cronistas espanhóis e também alguns italianos
«(…) Não presenciou, mas sobretudo leu. Ao contrário de outros autores,
não troca nomes nem títulos, e os seus textos acusam indesmentível rigor. As suas
crónicas, repletas de intrigas, algumas delas envolvendo Portugal. Não sabemos
se são inteiramente verdade, mas muitas vezes lançam novas luzes sobre a tomada
de decisões políticas por parte do papa, dos Reis Católicos ou dos reis
portugueses. Adiante veremos... E agora, apresentemos um autor fundamental, que
não foi cronista, mas ao qual se devem muitas informações sobre a corte dos
reis, e, na parte que nos toca de mais perto, ao ambiente no qual cresceram as
nossas princesas: Pietro Martire d'Anghien (1457-1526), Pedro Mártir
de Anglería para os espanhóis. Era, tal como o nosso Cataldo Parísio Sículo, que permaneceu na corte de João II
de Portugal e foi preceptor do seu bastardo Jorge, um dos muitos humanistas
italianos que buscavam honra e glória longe da sua Itália natal. Estes homens
de letras emigrados eram quase sempre os menos dotados do ponto de vista
intelectual e artístico, quando confrontados com os grandes nomes do humanismo
italiano, mas fixavam-se nas cortes que os recebiam. O latim, que dominavam na
perfeição, juntamente com o conhecimento dos autores clássicos, eram
fundamentais para lhes garantir um lugar como embaixadores ou preceptores dos
jovens nobres. Pedro Mártir (vamos chamar-lhe assim daqui em diante, por
comodidade) era, não siciliano como Cataldo, mas provinha da região de
Milão, e chegou a Espanha em 1487,
depois de uma passagem por Roma, para onde fora aos 20 anos. Um embaixador
espanhol na corte papal trouxe-o para Espanha, onde se radicou até ao final da
vida. Ensinou na Universidade de Salamanca e foi depois capelão de Fernando e
Isabel. Em 1492, a sua mais
importante tarefa era ensinar os jovens da corte: a título de curiosidade,
diga-se que foi preceptor dos filhos do degolado duque de Bragança, o depois
duque Jaime e seu irmão Dinis. O viajante alemão Jerónimo Münzer cifrou o
número dos seus alunos em quarenta: moços
esclarecidos, servidores da Casa Real. Em 1501 foi enviado ao Egipto em missão diplomática, e continuou ao
serviço de Fernando, o Católico, depois
da morte de Isabel I de Castela em 1504.
As suas cartas, correspondeu-se com centenas de pessoas, formam o famoso Epistolário,
e fornecem preciosas informações sobre a corte dos Reis Católicos e a descoberta
do Novo Mundo, ainda que o autor tenha tendência a exagerar muitas das suas
narrativas. São mais de 650 cartas, distribuídas por três volumes.
Lúcio Marineo Sículo (c. 1444-1533) foi outro humanista em exílio voluntário
junto da cone dos Reis Católicos, e, tal como os restantes, exerceu funções de
preceptor de jovens nobres, depois de ter passado pela Universidade de
Salamanca. Fernando, o Católico,
chamou-o para junto de si, nomeando-o seu capelão e cronista. Escreveu várias
crónicas, entre as quais a Crónica de Aragão e a Vida y hechos de los Reyes
Catolicos, e ainda a obra De las cosas memorables de España, e
é autor de um epistolário, tal como Pedro Mártir, embora menos interessante que
o deste último. O conjunto de italianos não fica por aqui, devendo ainda
referir-se Marino Sanuto (1466-1536), nativo da Sereníssima
República (de seu nome original Marin Sanudo), onde exerceu actividade
política. Escreveu um diário em 58 volumes que consiste num relato minucioso da
política veneziana, conhecida por estar a par de tudo o que de importante se
passava na Europa graças a um serviço de informações veiculado por espiões e
outros informadores. Aí registou toda a informação veneziana em torno da
política e dos mercados europeus. Uma espécie de diretório das informações da
espionagem veneziana do tempo: à Sereníssima chegavam notícias de todo o mundo
conhecido, desde os preços das especiarias asiáticas praticados em Lisboa até
ao que se passava nas salas de audiência da Santa Sé. São de Sanuto
algumas notícias sobre as cortes portuguesa e espanhola que usaremos neste
estudo.
É necessário referir que os reis, sobretudo Isabel I, foram
controversos mesmo para os seus contemporâneos. O facto de esta se ter sentado
no trono depois de uma guerra de sucessão, e de ter suplantado uma rival cuja
ilegitimidade era discutível, fez aumentar a importância da propaganda
política. Isabel tinha, de demonstrar a sua legitimidade como rainha face não
apenas a Joana de Trastâmara, filha do seu meio irmão, como também em
relação ao marido. Muitos havia, sobretudo em Aragão, onde a tradição favorecia
o sistema sálico (segundo o qual o trono podia ser herdado apenas por
varões e transmitido por linha masculina), que consideravam que o papel de rei
cabia apenas ao seu marido, Fernando de Aragão, também ele um Trastâmara, que
devia reinar em nome da mulher. Isabel recusou-o liminarmente, como se sabe.
Muitos, como o cronista Afonso de Palencia, achavam desadequado que uma mulher
reinasse, e Isabel, a Católica, teve
de criar uma imagem que o desmentisse». In Isabel Guimarães Sá, Rainhas Consortes de
D. Manuel I, Isabel de Castela, Maria de Castela e Leonor de Áustria, C. de
Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4710-6.
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