domingo, 23 de fevereiro de 2014

História da Europa Medieval. Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «… os traços da fisionomia do estrangeiro eram belos e regulares, respirando até certa nobreza, os olhos tinham um fulgor sinistro, um olhar penetrante e ameaçador, que gelava o sangue a quem o observava. Naquele olhar havia, ao mesmo tempo, a expressão de um juiz inexorável e de um condenado sem esperança»

Cortesia de wikipedia

«Uma narrativa fantástica de como surgiu a ordem dos Jesuítas, bem como a história de seu fundador, Ignácio de Loyola. Suas tramas de controle de poder, formas corruptas para alcançá-lo, e manter a todo custo a riqueza adquirida por meio de embuste e traições. Estamos na parte mais rude e montanhosa da selvática província de Catalunha. A capital desta província, a rica e populosa Barcelona, é o centro de comércio, de literatura e de patriotismo, como não encontra segundo em nenhuma cidade da Europa; mas, mal saem as portas da cidade, acha-se a gente logo no reino do deserto, e principiam a encontrar-se os seus sombrios habitantes; o mendigo e o salteador. Claro está que não falamos da Catalunha moderna, que não é inferior a nenhuma outra província de Espanha pela sua civilização adiantada e liberal. A acção do drama, que vamos narrar passou-se há três séculos e meio, remontando ao terrível começo do século dezesseis, e aos princípios dessa luta religiosa, que deve fazer correr rios de sangue em toda a Europa. O dia caminhava para o seu termo; os últimos raios do astro luminoso douravam os cimos de Montserrat, áspera montanha que se ergue para o céu a vinte e quatro milhas de Barcelona.
O monte tem em catalão o nome de Serrat, do latim Serratus. Afirmam os etimologistas que os romanos deram aquele nome à montanha em razão dos seus flancos escarpados, que se assemelham aos dentes de uma serra, em latim serra. Como quer que seja, no princípio das conquistas dos francos na Espanha, e, portanto, no tempo de Carlos Magno, alguns monges fundaram a meio da encosta um mosteiro, que se chama Abadia de Montserrat. Este mosteiro foi sucessivamente enriquecido pelos condes de Barcelona e de Catalunha, pelos reis de Aragão e pelos reis de Espanha, à medida que os membros esparsos da nobre nação se reuniam para formar um só estado. É certo que alguns boatos, que corriam naquelas imediações, provavelmente espalhados por inimigos, punham um tanto em dúvida os sentimentos ortodoxos dos frades. Uns, acusavam-nos de terem conservado no fundo do coração os vestígios daquele arianismo, que, depois de ter sido a religião oficial dos visigodos, fora afinal extirpado pela hipocrisia dos bispos e pela espada dos francos. Outros, afirmavam que no temido convento tinham encontrado refúgio as ideias donatistas, que vieram da África, vizinha da Espanha, heresia que a Igreja destruiu a ferro e fogo, visto não poder vencê-la pela lógica dos argumentos. Por último, a versão que merecia mais crédito era a que afirmava que no convento de Montserrat se tinham refugiado os últimos templários, ordem militar e religiosa fundada para defender o Santo Sepulcro, e que fora destruída por Felipe o Belo, rei de França, com o fim de se apropriar das suas imensas riquezas.
Filipe o Belo tivera por cúmplice naquele sanguinolento roubo o papa Clemente VI, um francês que ele fizera eleger papa só para que o auxiliasse naquele saque; e o pontífice, para com mais segurança ferir os infelizes templários, e os punir pela maior das suas culpas, a de serem riquíssimos, acusara aqueles desgraçados de heresia. Os Templários foram saqueados, presos, assassinados, e o seu Grão Mestre, Jacques de Molay, foi queimado vivo; mas antes de morrer, o infeliz levantou para o céu as mãos inocentes, e suplicou a Deus que no período de um ano e um dia chamasse ao seu tribunal, para julgamento eterno, o papa e o rei. O Onipotente ouviu aquela prece, e no prazo fixado os dois cúmplices morreram. A morte de Filipe ocorreu em tais circunstâncias, que o povo julgou ver nela o sinal evidentíssimo da cólera de Deus. Andando um dia à caça, caiu do cavalo, e os dentes de um javali rasgaram as vísceras do rei assassino. O papa morreu também no mesmo ano, e todos viram naquela dupla morte o castigo; haviam merecido os dois criminosos.
À morte de Jacques Molay e dos seus companheiros seguiu se uma perseguição geral contra os Templários, muitos dos quais se refugiaram nos países de que eram naturais, principalmente nas províncias italianas e espanholas. Alguns destes acharam refúgio entre os monges da abade de Montserrat, já eivados, segundo se dizia, das mesmas heresias e tanto o papa, como os bispos de Carteia e da Catalunha estavam irritadíssimos contra aqueles frades, e muitas vezes tinham tentado suprimi-los. Mas os monges, já poderosos pela riqueza e pelos domínios eram poderosíssimos pela popularidade de que gozavam. Naqueles rochedos da Catalunha, país clássico das revoluções, ninguém atrevia a assaltar um mosteiro, que ao primeiro sinal se ver rodeado de milhares de micheletti de armas infalíveis. Por modo que, por vontade ou por força, os superiores da Igreja deixariam tranquilos os frades de Montserrat. E agora, que com esta breve digressão expusemos as conexões da Espanha e da Europa naqueles tempos, é ocasião de faz entrar em cena os principais personagens desta verídica história.

O Peregrino
Um homem ainda novo, apesar de o rosto emagrecido mostrar ter ele mais idade do que realmente tinha, subia vagarosamente a encosta do monte. Era evidente que se dirigia para o mosteiro. Na ampla e cómoda estrada, que os frades tinham construído desde a falda do monte até à abadia, o peregrino encontrara no seu percurso bastante pessoas. A abadia era um lugar de peregrinação tão venerado e concorrido, que não era maravilha encontrarem-se naquele caminho muitos peregrinos a toda a hora do dia. E contudo, nenhum dos que encontravam aquele homem o saudava, nenhum lhe dirigia aquele cordial Salve-o Deus!, que os espanhóis dirigem a toda a gente, que encontram nos caminhos, por mais humilde que seja a sua condição. Pelo contrário, todos os que encontravam o nosso personagem arredavam-se dele com visível expressão de terror. Dir-se-ia que sobre aquele desventurado pesava uma maldição, cujos terríveis feitos todos procuravam evitar. Qual seria a razão porque aquele estranho personagem assim se via desacompanhado não só da simpatia, que reúne os amigos, nas até aquela espécie de piedade, que não é costume negar-se mesmo aos indiferentes? Decerto não era por causa da sua figura. O desconhecido era de uma nobre e bela estatura, de membros bem proporcionados, pesar de emagrecido por longos jejuns. No modo como vestia o humilde hábito do peregrino adivinhava-se claramente o homem, que noutros tempos usara com soberba desenvoltura as nobres vestes de cavaleiro. O nosso personagem coxeava um pouco da perna esquerda, nas decerto não era esse o motivo que causava tanta repugnância aos outros peregrinos, pois naqueles tempos de guerra encarniçada e incessante era mais para admirar ver-se um homem e sem defeitos, nem ferimentos, do que um estropiado, e a montanha de Montserrat era decerto o lugar onde menos admiração e estranheza devia causar o encontro de um homem coxo.
De facto, a estrada que conduzia à igreja do mosteiro estava cheia de coxos, de aleijados e de cegos, que diariamente se dirigi ali, a pedir à miraculosa imagem de Nossa Senhora de Montserrat um alívio aos seus males. A causa do estranho efeito, que nos montanheses catalães produzia à vista do peregrino, devia ser a singular expressão que este tinha no olhar. E na verdade, ao passo que os traços da fisionomia do estrangeiro eram belos e regulares, respirando até certa nobreza, os olhos tinham um fulgor sinistro, um olhar penetrante e ameaçador, que gelava o sangue a quem o observava. Naquele olhar havia ao mesmo tempo a expressão de um juiz inexorável e de um condenado sem esperança. Ao fitá-lo, adivinhava-se naquele fogo sinistro, que lhe animava o olhar, uma severidade sem limites e uma série de tormentos sobre-humana infligidos sem piedade a um homem cuja duríssima têmpera de ânimo o tornava mais apto do que qualquer outro para sofrer. Dir-se-ia que era um condenado, ao qual um imperscrutável decreto de Deus tivesse feito sair dos horrendos abismos do inferno para vir julgar os outros pecadores, sem por isso ter obtido mínimo alívio para os seus próprios tormentos». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, Rio de Janeiro, 1947, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.

Cortesia de wikipedia/JDACT