O mito e a realidade
«Entre as maiores
manifestações da consciência crítica no século XX a presença de Camus é certamente uma das mais
generosas. Sobretudo agora, quando tantas das suas reflexões podem ser
redescobertas como advertências ou diagnósticos
de espantosa acuidade e rigor intelectual. Não há como duvidar de que o homem
dos nossos dias tem tudo para abrigar conflitos ainda mais intensos, e mais
devastadores, ou mais fecundos, que os de todas as outras épocas. É certo que
ele contou com enormes precursores, mestres que foram ao fundo do desenvolvimento
moderno de suas emoções, e suas razões, como Nietzsche, Dostoiévski, Proust,
Kierkegaard, Kafka (para só ficarmos em alguns dos nomes mais caros a Camus), e
chega, hoje em dia, aos desdobramentos efectivos e consistentes das revoluções de
Darwin, Marx, Freud, Einstein. Mas, até mesmo por isso tudo, os homens presentes”, na vida presente, estão ainda mais sós e dilacerados.
Há uma busca desesperada, mas persistente, de novos valores. Como toda
possibilidade dos sistemas mágicos ou metafísicos se encontra pulverizada, como
só insiste ou resmunga nos desvãos do medo, nos laboratórios da psicopatologia
ou em sinistros desvios de igreja e dissimulação, esse homem presente só pode
contar consigo mesmo, seu cérebro, seus sentidos, suas mãos, seus meios. Daí o
encontro, cada vez mais frequente, com o absurdo. E face a face com a
sua condição, esse homem tem muito poucos amigos. Um deles, de extraordinária
inteligência e lealdade, é Albert Camus.
Particularmente neste caso de O
mito de Sísifo, livro de terrível beleza com a sua aguda apreensão do
horror nas armadilhas do quotidiano, seu reforço ao inconformismo e à recusa a
todas as fugas, seu empenho intransigente em valorizar e enriquecer as lutas da
lucidez. Camus o escreveu no começo
da II Guerra Mundial. É extremamente curioso, mas de toda coerência com o seu
pensamento, que ele não se detenha no problema da guerra e a rejeite
radicalmente nas entrelinhas, fazendo do homem
absurdo o último a poder aceitá-la a compactuar com as suas aberrações. Quem
coloca em primeiro plano a revolta, o discernimento, a discussão da morte
voluntária, a oposição às esperas e esperanças infundadas, a realidade física
ou a repulsa a qualquer tipo de servidão está plasmando indirectamente a
atitude do anti-autoritarismo e, em consequência, propondo uma paz insubmissa,
guiada ao mesmo tempo pela razão e pela paixão amorosa (especialmente nos seus modelos do homem absurdo, quando
trata de Don Juan, dos comediantes e dos conquistadores). Mesmo
neste último caso, mobilizado como todo o mundo, o filósofo passa
a opção pela luta e pela resistência, mas também o desprezo pela guerra e seus
ingredientes: A grandeza mudou de
campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro. Mais
especificamente, Le mythe de Sisyphe
(1942),
que, não vamos esquecer, o autor publicou aos vinte e nove anos, é a primeira
formulação teórica da noção de absurdidade, isto é, da tomada de consciência,
pelo ser humano, da falta de sentido
(ou, portanto, do sentido absurdo) da sua condição. Situando a questão nos
planos da sensibilidade e da inteligência, Camus
trabalha com designações que muitas vezes se confundem, na base de estímulo e
resposta assumidos com o mesmo nome. Assim, o homem absurdo é o que
enfrenta lucidamente a condição, e a humanidade
absurda. Antecedido intuitiva e literariamente pelo génio de Franz Kafka, Camus é o primeiro a descrever objectivamente
as situações e consequências da absurdidade, compreendendo a sua lógica e propondo
a sua moral». In Mauro Gama
Introdução à edição original
«Fui posto a meio caminho entre a miséria e o sol, escreve
Albert Camus em O avesso e o direito.
Ele nasceu numa propriedade de vinicultura perto de Mondovi, Constantina,
na Argélia. Seu pai foi mortalmente ferido na batalha do Marne em
1914. Com a libertação, o Combat, de que ele é o redactor-chefe,
é um diário que pelo que reclama e por seu tom, faz época na história da
imprensa. Mas é o escritor que já se impõe como um dos cabeças da sua geração.
Em Argel, tinha publicado Núpcias
e O avesso e o direito. Erroneamente
vinculado ao movimento existencialista, que atinge o apogeu no pós-guerra,
Albert Camus escreve, na verdade, uma obra articulada em torno do absurdo e da revolta. Talvez
tenha sido Faulkner quem melhor resumiu o seu sentido geral: Camus dizia que o único verdadeiro papel
do homem, nascido num mundo absurdo, era viver, ter consciência de sua vida, de
sua revolta, de sua liberdade. E o próprio Camus explicou como havia concebido o conjunto de sua obra: No início eu queria exprimir a negação. Em três formas: romanesca,
foi O estrangeiro; dramática,
Calígula, O equívoco; ideológica,
O mito de Sísifo. E previa o positivo em três formas também: romanesca,
A peste; dramática, O estado de sítio e Os justos; ideológica, O homem revoltado. Já entrevia
uma terceira categoria, em torno do tema do amor. A peste, assim, iniciado em 1941, em Oran, cidade que servirá de cenário para o romance,
simboliza o mal, um tanto como
Moby Dick, cujo mito impressiona Camus. Contra a peste, os homens
adoptarão diversas atitudes e mostrarão que o homem não fica numa completa impotência
diante da sorte que lhe cabe. Esse romance da separação, da infelicidade e da
esperança, lembrando de maneira simbólica aos homens de seu tempo o que
acabavam de viver». In Pascal Pia
Um raciocínio absurdo
Ó minha alma, não
aspira à imortalidade: esgota o campo do possível. In Píndaro
As páginas que se seguem
tratam de uma sensibilidade absurda que se pode encontrar esparsa em nosso
século, e não de uma filosofia absurda que o nosso tempo, para sermos claros,
não conheceu. É, portanto, de uma honestidade primordial assinalar, logo de
início, o que elas devem a certos espíritos contemporâneos. Minha intenção de
ocultá-los é tão pequena, que eles se verão todos citados e comentados ao longo
da obra». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do
Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.
Cortesia de
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