quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Fernando Pessoa. Poeta da Hora Absurda. Mário Sacramento. «O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas… Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso… E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso… Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte…»

Cortesia de wikipedia

Encomendação do autor aos seus Numes tutelares
«Quando acabei de ler, Goethe dirigiu-se de novo a mim: — Bem! Disse ele, mostrei-lhe uma coisa boa! Daqui a uns dias há-de dizer-me a sua opinião a respeito dele». In Conversações de Goethe com Eckermann

aqui a uns dias, - porquê? Decerto por Goethe saber que Eckermann, tão devotado à sua obra e ao seu génio, só então recuperaria a plenitude da sua inteligência crítica: só uma vez esvaído o fragor da emoção-imediata a obra poderia assumir os contornos da emoção-inteligível, e só então valeria a pena conversar sobre ela. No plano estético, vale apenas a obra que sobreviva a uma experiência dessas, concluiremos. Tal qual o amor que resiste ao apartamento, tenderão alguns a confundir. E é o que mais importa aperceber: se a distância e o tempo podem de per si desvanecer ou acrescer o amor, o que distingue, pelo exemplo dado, a emoção estética no próprio terreno da vida afectiva é a circunstância de, forma complexa que é da emotividade superior, implicar por ai a anuência da razão, e só se tornar como tal inconfundível a partir do momento em que atinge um limbo de inteligibilidade. Que para isso tenham por vezes a ausência e o tempo de concertar-se, é apenas um aspecto já implícito na noção de que o disfrute artístico exige uma iniciação. Prepararmo-nos culturalmente para a apreensão duma certa modalidade de arte não é de facto senão familiarizarmo-nos com os caminhos que levam à plenitude dessa integração.
E compreende-se assim, sem contradição, que se, por hipótese, aquele episódio das relações de Eckermann com Goethe se referisse, não à leitura de uma obra do próprio Goethe, mas, por exemplo, à de uma poesia inédita de Shakespeare, pudesse Goethe pronunciar-se imediatamente sobre ela, pois atingira, nesse domínio, a maturidade em que a emoção logo se libra. Assim, longe de admitirmos que tal circunstância possa redundar em desfavor da emoção-estética como tal, insistiremos em que só desse modo ela vibra afinal em plenitude. Se não, recorde-se como, no regresso dum espectáculo artístico, é quase sempre um índice da qualidade que assumiu a maior ou menor reserva que opomos à comunicação das nossas impressões. É no isolamento dessa espontânea reserva ou, se impossível, num remedeio de alheamento que se processa uma das mais importantes fases daquela operação íntima. Num tal sentido, pode dizer se que o melhor dum autêntico espectáculo artístico começa muitas vezes, quando já terminou.
Não faltará, contudo, quem pretenda que isso só sucede quando o espectador é um crítico. Ora o que distingue objectivamente o crítico do comum dos mortais é apenas a capacidade de se expressar como tal. Com efeito, o dom do espírito crítico tanto distingue entre si os indivíduos incluídos num comum-de-mortais como os compreendidos num comum-de-críticos. E tem-se assim de pressupor que em todo o mortal haja a inibição dum crítico, e ainda (como neste) a dum artista. De outro modo, como teriam a arte uma crítica e a arte e a crítica um público? Logo, a objecção tornou qualificativa uma distinção por ora quantitativa apenas. Fazendo-o, apontou porém à realidade, pois só na medida em que o crítico se apercebe do que o separa gradativamente dos demais se consciencializa como tal e devem crítico. Assim chegamos a reconhecer perante a arte a existência dum plano de apercepção que tem, sem dúvida, características próprias mas que resultaram pelo mero incremento das mais comuns. Quais serão elas?
Criticar é, fundamentalmente, escolher e ordenar. É objectivar, portanto, e, como tal, descrever. Seja o exemplo clássico da descrição de paisagem: cumpre ao seu autor organizar um juízo, através do exame do objecto em causa, pelo qual o integre na escala de valores dum consenso que, tendo já definido a paisagem como idílica, agreste, soturna, grandiosa, quer que lho confirmem no porquê. A dependência subjectiva de tais qualificativos encontra assim na existência desse consenso um limitador, face à contradição que seria a sua incondicional entrega ao puro arbítrio dessa subjectividade.
Ora a arte é um produto do homem em sociedade. E em sociedade, tal como a conhecemos, a primeira coisa que sucede a um ser humano é tomar partido. Logo, a objectividade do critico é sempre função da posição social por ele assumida, podendo estar, assim, ou não, de acordo com a orientação efectiva do momento histórico em que surge, que o mesmo é dizer: ter ou não viabilidade, ou ainda: ser ou não ser objectividade de facto. Daqui resulta o carácter ensaístico da crítica, agravado, por demais, com o que o gosto, a cultura e a experiência do crítico fazem intervir como pessoalismo estreme numa actividade que visa a superação disso tudo. Assim, se o crítico se deixa enlear pelos filtros da emoção imediata, cai num impressionismo nebluloso; se toma partido contra a senda aberta ao criticismo do seu tempo, esgota-se no jogo estéril de provar que há razões contra a razão; mas cumpra-se ele o mais satisfatoriamente em relação a tudo isso, e não poderá assim mesmo esquecer-se que não há gosto, não há cultura, não há experiência que não evoluam, quer dizer, que não há objectividade que se não tolde, nem descontentamento crítico que se não avinagre em auto censura e se não esfume em decepção». In Mário Sacramento, Fernando Pessoa. Poeta da Hora Absurda, Contraponto [de Luís Pacheco], 1ª edição de 1959, Universidade de Toronto, 3-1761-01460047-2.

Cortesia de UToronto/JDACT