Encomendação do autor aos seus Numes
tutelares
«Quando acabei de ler, Goethe
dirigiu-se de novo a mim: — Bem! Disse ele, mostrei-lhe uma coisa boa! Daqui a
uns dias há-de dizer-me a sua opinião a respeito dele». In Conversações de Goethe com
Eckermann
aqui a uns dias, - porquê? Decerto por Goethe saber
que Eckermann, tão devotado à sua obra e ao seu génio, só então recuperaria a plenitude
da sua inteligência crítica: só uma vez esvaído o fragor da emoção-imediata a obra
poderia assumir os contornos da emoção-inteligível, e só então valeria a pena conversar
sobre ela. No plano estético, vale apenas a obra que sobreviva a uma experiência
dessas, concluiremos. Tal qual o amor que resiste ao apartamento, tenderão
alguns a confundir. E é o que mais importa aperceber: se a distância e o tempo podem
de per
si desvanecer ou acrescer o amor, o que distingue, pelo exemplo dado, a
emoção estética no próprio terreno da vida afectiva é a circunstância de, forma
complexa que é da emotividade superior, implicar por ai a anuência da razão, e
só se tornar como tal inconfundível a partir do momento em que atinge um limbo de
inteligibilidade. Que para isso tenham por vezes a ausência e o tempo de concertar-se,
é apenas um aspecto já implícito na noção de que o disfrute artístico exige uma
iniciação. Prepararmo-nos culturalmente para a apreensão duma certa modalidade
de arte não é de facto senão familiarizarmo-nos com os caminhos que levam à plenitude
dessa integração.
E compreende-se assim, sem
contradição, que se, por hipótese, aquele episódio das relações de Eckermann com
Goethe se referisse, não à leitura de uma obra do próprio Goethe, mas, por
exemplo, à de uma poesia inédita de Shakespeare, pudesse Goethe pronunciar-se
imediatamente sobre ela, pois atingira, nesse domínio, a maturidade em que a emoção
logo se libra. Assim, longe de admitirmos que tal circunstância possa redundar em
desfavor da emoção-estética como tal, insistiremos em que só desse modo ela vibra
afinal em plenitude. Se não, recorde-se como, no regresso dum espectáculo artístico,
é quase sempre um índice da qualidade que assumiu a maior ou menor reserva que opomos
à comunicação das nossas impressões. É no isolamento dessa espontânea reserva ou,
se impossível, num remedeio de alheamento que se processa uma das mais
importantes fases daquela operação íntima. Num tal sentido, pode dizer se que o
melhor dum autêntico espectáculo artístico começa muitas vezes, quando já terminou.
Não faltará, contudo, quem
pretenda que isso só sucede quando o espectador é um crítico. Ora o que distingue
objectivamente o crítico do comum dos mortais é apenas a capacidade de se expressar
como tal. Com efeito, o dom do espírito crítico tanto distingue entre si os indivíduos
incluídos num comum-de-mortais como os compreendidos num comum-de-críticos. E tem-se
assim de pressupor que em todo o mortal haja a inibição dum crítico, e ainda (como
neste) a dum artista. De outro modo, como
teriam a arte uma crítica e a arte e a crítica um público? Logo, a objecção
tornou qualificativa uma distinção por ora quantitativa apenas. Fazendo-o, apontou
porém à realidade, pois só na medida em que o crítico se apercebe do que o separa gradativamente dos demais
se consciencializa como tal e devem crítico. Assim chegamos a reconhecer
perante a arte a existência dum plano de apercepção que tem, sem dúvida, características
próprias mas que resultaram pelo mero incremento das mais comuns. Quais serão elas?
Criticar é, fundamentalmente,
escolher e ordenar. É objectivar, portanto, e, como tal, descrever. Seja o exemplo
clássico da descrição de paisagem: cumpre ao seu autor organizar um juízo, através
do exame do objecto em causa, pelo qual o integre na escala de valores dum consenso
que, tendo já definido a paisagem como idílica, agreste, soturna, grandiosa, quer
que lho confirmem no porquê. A dependência subjectiva de tais qualificativos encontra
assim na existência desse consenso um limitador, face à contradição que seria a
sua incondicional entrega ao puro arbítrio dessa subjectividade.
Ora a arte é um produto do
homem em sociedade. E em sociedade, tal como a conhecemos, a primeira coisa que
sucede a um ser humano é tomar partido. Logo, a objectividade do critico é
sempre função da posição social por ele assumida, podendo estar, assim, ou não,
de acordo com a orientação efectiva do momento histórico em que surge, que o
mesmo é dizer: ter ou não viabilidade, ou ainda: ser ou não ser objectividade
de facto. Daqui resulta o carácter ensaístico da crítica, agravado, por demais,
com o que o gosto, a cultura e a experiência do crítico fazem intervir como pessoalismo
estreme numa actividade que visa a superação disso tudo. Assim, se o crítico se
deixa enlear pelos filtros da emoção imediata, cai num impressionismo nebluloso;
se toma partido contra a senda aberta ao criticismo do seu tempo, esgota-se no jogo
estéril de provar que há razões contra a razão; mas cumpra-se ele o mais satisfatoriamente
em relação a tudo isso, e não poderá assim mesmo esquecer-se que não há gosto, não
há cultura, não há experiência que não evoluam, quer dizer, que não há objectividade
que se não tolde, nem descontentamento crítico que se não avinagre em auto
censura e se não esfume em decepção». In Mário Sacramento, Fernando Pessoa. Poeta da
Hora Absurda, Contraponto [de Luís Pacheco], 1ª edição de 1959, Universidade de
Toronto, 3-1761-01460047-2.
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