quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Em doida fúria são arremessados para o espaço os cocos e as “ollas”, que juncam o chão de destroços. A água da chuva corre em borbotões pelo tronco abaixo e as palmas, acalmada a tempestade, erguem-se sujas e esfarrapadas»

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Goa
«(…) Se os habitantes das Novas Conquistas tentassem em tempo algum emancipar-se, por certo que ninguém taxaria esse acto de atentado contra a nossa soberania, porque não temos o direito de exigir vassalagem àqueles que nada nos devem; e, contudo, essa gente rude conserva um religioso respeito e até amor pelo nome português. Guerreiros e aventureiros como nós, quase se nos ligam pela afinidade de génio e de carácter. O exército da Índia era na maior parte formado dessa gente, e eles nunca desmentiram a tradicional coragem e lealdade, quer nas companhias de Satary, quer nos sertões da Zambézia. Quem há na Índia, se exceptuarmos os portugueses e uma grande parte dos charadós, que se avantaje em firmeza de carácter, em lealdade e bizarra hombridade aos nossos Sar-Dessays e Ranes? Encastelados nos seus palácios, cercados dos seus galhardos sypaes, os Dessays das Novas Conquistas são ainda os restos desses tempos em que os altivos rajás representavam os nossos poderosos barões.

Nas Novas Conquistas, ao lado dos habitantes generosos e aguerridos, a Natureza também se reveste do quer que é de audaz e febril, como notámos. A arequeira parece preencher o ideal ténue e vaporoso do apático filho do Ganges. Direita, esguia, de uma cor pardacenta, quase nua como a castidade, ergue a cabeça melancólica e copada: é um brâmane nu e pensativo. Um regato de límpida água corre-lhe aos pés; os ramos caem em preguiçosas curvas, como os braços da amante, e os cachos de frutas, de cor alaranjada, pendentes do alto, quais brincos ornando a face da mulher, dão-nos a imagem da lânguida baiadeira. O arecal é o bosque sagrado da Índia. A arequeira é a pompa, o luxo, a alvorada oriental, assim como a palmeira representa os tempos heróicos, a antiguidade quase fabulosa desse povo-mito. Irmã daquela, levanta-se esta, esbelta e triunfante. Saltam-lhe aos ventos douradas pelo sol as palmas, como a cabeleira fulva de um herói germano; o tronco range qual mastro de um navio açoitado pela tempestade e balouça, como os antigos atletas do circo, em curvas audaciosas. As palmas varridas pelo terral espalham um cício igual ao da flâmula agitada pelo vento. Se um vendaval acoita o palmar, como é então belo ver a luta de equilíbrio em que se empenham esses gigantes. A palmeira, ao princípio, oscila lentamente, recurvando-se rápido, nervosa, à proporção que o vento cresce. Cabeceiam as comas entrelaçando-se umas com as outras, e as palmas batidas, resvalam num choque de armas. Em doida fúria são arremessados para o espaço os cocos e as ollas, que juncam o chão de destroços. A água da chuva corre em borbotões pelo tronco abaixo e as palmas, acalmada a tempestade, erguem-se sujas e esfarrapadas.
Num dia de Maio quente e pesado, o sol a dardejar implacável sobre as cabeças alagadas em suor, a palmeira é uma tenda de Deus para o pobre indiano. A água de coco é o gelo naqueles climas. O boiá fatigado e a escorrer em suor apanha do chão uma palma, arranca dela uma folha e enxuga o corpo ou antes raspa-o como com fio de uma faca; depois, ajudado dos dedos dos pés; tece uma espécie de esteira, estende-a à sombra e dorme, apenas descansa o corpo sobre o frio leito. O boiá dorme com tanta facilidade como bebe urraca por todas as tavernas que depara no seu trânsito. Quem andou pela Índia deve ter visto como em dia de calmaria os boiás e os marinheiros, deitados sobre as lajes do passeio e nos degraus do Cais das Colunas, de braços estendidos, o rosto coberto por um lenço de chita, dormem debaixo daquele céu ardente, com uma placidez e um bem-estar inexprimíveis. Quando se levantam, vê-se desenhada no chão a figura humana». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT