«(…) E tudo teria passado despercebido, não ficando nada na memória,
senão um quadro inédito, se, nesse instante, não espadanasse uma gargalhadinha moça
e sadia a evolar-se pelo ar, muito perto. Deteve-se primeiro curioso, depois
com súbito interesse pela beleza rústica donde partia o riso. Gostou do que
viu. Nunca contemplara uma moça tão atraente, de pé descalço, e nem podia
adivinhar que um bairro de facínoras e
desordeiros entesourasse uma bela jóia como aquela. Nunca vira, também,
uma trança igual, tão preta que fulgia ao sol. A-Leng, porque era ela,
captou o interesse e teve a desagradável sensação de ser escrutinada da cabeça
aos pés. Não estava habituada a um exame tão atrevido, sobretudo, dum estranho e
demais kuai-lou. Mais perturbada que irritada, resolveu afastar o
insolente, à vista das companheiras. Ao tirar o balde carregado até o topo,
fingiu desequilibrar-se e a água saltou, chapinhando o solo, atingindo os
sapatos e as calças bem vincadas do Belo Adozindo. Não pediu desculpas,
voltando-se para encher de novo o balde. Houve risos que doeram mais ao rapaz
do que o mau jeito dela, feito de propósito. Sem pronunciar palavra, Adozindo
seguiu caminho, enxofrado de despeito. Era a primeira vez que uma mulher se
atrevia a desdenhá-lo. Em vez de enlanguescer-se perante a sua beleza irresistível,
a rapariga ousava sujar-lhe os sapatos lustrosos e as calças, sem se desculpar.
E era uma aguadeira ou lavadeira, de categoria abaixo duma criada de servir. A desfaçatez! Ali estava um
exemplo da decantada malcriação da gente do Cheok Chai Un. Nunca mais
poria os pés ali.
O brilho do sol, a aragem refrescante que bolia com as árvores de S.
José da Rua do Campo, a temperatura seca do melhor mês do ano, dissiparam-lhe o
abespinhamento. Não ia consumir a sua disposição numa zanga fútil, por causa
duma aguadeira. Volveu o pensamento para a viúva do Baixo Monte, a estupenda Lucrécia,
a sua última conquista que não esperara acabar o luto para se lhe entregar nos
braços. Se era rica em bens, mais o era na cama, com aqueles jeitosos seios de
rola arrulhante. Enquanto aguardasse o recato do luto, não viria com exigências
e podia aproveitar-se bem. Quando completasse um ano, então chegaria o momento
da verdade. Mas esta data ainda estava bem longe, tinha muitos meses para planear
como descartar-se dela. Ladeou o Jardim de S. Francisco, onde crianças
chilreantes, acompanhadas das criadas, corriam nas áleas dos canteiros, e aproximou-se
da muralha que o separava do mar. A baía da Praia Grande, desde o fortim de S. Francisco
até acurva do Bom Parto, coalhava-se de juncos e lorchas, na
poalha do sol. Encaminhou-se na sombra recolhida das árvores de pagode, cujos
murmúrios eram um fundo musical para a cantilena da maré enchente, espumando
nos granitos da Praia Grande.
Senhoras vestidas de dó (vestimenta
com véu e saia comprida, de cor preta, geralmente usada por mulheres idosas)
passavam embiocadas, vindas da igreja. As casas assobradadas permaneciam de
persianas fechadas, pois a hora era ainda matinal e as moças preferiam a tarde
para se postarem à janela. Vendilhões ambulantes apregoavam acepipes
avinagrados e achares chineses. O amolador de facas esfalfava-se, rolando a sua
maquineta, enquanto, mais adiante, o sapateiro-remendão chamava a clientela,
martelando o ferro com o característico toc-toc. Olhou para o relógio e
apressou-se. Os amigos iriam protestar, pois atrasara-se. Porém, ao pisar o cais
de pedra, em plano inclinado, no começo da Avenida Almeida Ribeiro, eles bebiam
o tau-fu-fá
(pasta de soja servida em calda doce), que ainda estava quente. O vendedor perguntou-lhe
se queria, mas Adozindo recusou. Lançou a vista para o edifício do Banco
Nacional Ultramarino, ainda fechado, e depois para o Hotel Riviera, ambos à sua
frente.
Na varanda dum quarto do segundo andar, uma loira penteava o cabelo de
fartas madeixas, caídas sobre os ombros. Uma inglesa! Nunca
experimentara uma inglesa. Para a sua colecção, seria um espécime
verdadeiramente singular. Ela, do alto, observou-o indiferente, continuando a
deslizar o pente pelos cabelos. Ele, em baixo, pôs-se logo em postura fatal,
sem avaliar o possível ridículo. - Não me digas que também foi tua. - Não foi,
mas se viver em Macau, sê-lo-á». In Henrique Senna Fernandes, A
Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT