«Os descobrimentos não foram somente a descoberta de territórios
longínquos pelos Portugueses ou mesmo pelos Europeus; foram também a descoberta
de uma nova construção social de que estas viagens, estas rotas oceânicas,
estas trocas comerciais faziam parte, a construção da economia-mundo
capitalista em que todos hoje vivemos. A descoberta dessa estrutura ficou a
dever-se a um grupo de investigadores, a bem dizer, um grupo de hereges, que
escreveram em meados do século XX. Entre estes textos transformadores,
encontra-se a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial
(1963).
Magalhães Godinho oferece-nos a conclusão de mais de mil páginas no seu
parágrafo de abertura, que vale a pena ler com atenção:
- Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise de expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre em aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção dos bens multiplica-se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista.
O mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução Económica,
eis o tema que Magalhães Godinho põe em primeiro plano. A continuação do seu
livro, contudo, não fala do mercado, mas conta-nos a evolução dos mapas-mundo
europeus, uma viagem do fantástico ao real até que a medida do tempo e do
espaço vá infiltrar-se cada vez mais
em todos os aspectos da vida quotidiana. E Magalhães Godinho termina a
sua introdução recordando-nos o que escrevia Tomé Pires no início do século
XVI:
- O qual trato de mercadoria é tam necessário que sem ele se non susteria o mundo; este é que nobrece os Regnos, que faz grande as gentes e nobelita as cidades, e o que faz a guerra e a paz do mundo. É hábito o da mercadoria limpo. Nom falo no meneo dela, havido em estima: que cousa pode ser melhor que a que tem por fundamento a verdade? (Suma Oriental)
Magalhães Godinho chama
a isto a palavra decisiva. Mesmo assim, não se trata apenas da troca
de bens. É todo um sistema que se constrói. Magalhães Godinho escreveu um
verbete para o 2.º volume do Dicionário de História de Portugal sobre os
complexos históricos-geográficos no qual insiste que a economia se
insere num complexo de estruturas, um sistema (ele não recua perante esta
palavra), e acrescenta: a noção de
estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores
de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de
apreender analítico-sinteticamente (por explicação-compreensão) o facto social
total. Ora aí está! A história total apresenta-se-nos como uma visão
fundamental, uma exigência, um fardo. Teremos
nós podido assumir essa tarefa? É tema para discussão. Começarei com
uma expressão que Magalhães Godinho utiliza no seu livro recente, Le
devisement du monde (2000), ao qual dá o subtítulo Da pluralidade dos espaços ao espaço
global da humanidade, séculos XV-XVI. No título do primeiro capítulo,
ele fala da invenção do mundo, no seio da qual estava a dar-se, aparentemente,
a
formação da Europa. O mundo não
existia antes do século XV? A
Europa não era já uma realidade muito antiga? Não, não era, porque
falar assim seria reificar estes termos descritivos, que devem, isso sim, ser
reservados às realidades nos espíritos das pessoas e à substância das suas
vidas.
Inventava-se o mundo porque, pela primeira vez na
história, aquilo a que chamamos agora Europa era ligada de maneira substancial
à Ásia e às Américas, de uma forma sistemática e contínua. E isto não podia
deixar de reflectir-se na vida das pessoas. Formava-se a Europa precisamente
porque se inventava o mundo. A Europa deixava de ser um sinónimo, de resto pouco
utilizado, para a Cristandade. Magalhães Godinho dá mesmo ao seu quinto
capítulo o título Da Cristandade à
Europa. A Europa vai tornar-se de modo mais imediato, através de um difícil divórcio da Cristandade, o
centro de uma economia-mundo, cujos interesses relativamente à periferia vão
ampliar-se ao ponto de determinarem o desenvolvimento não somente desta economia-mundo,
mas daquilo que se transformou no seu centro. E para compreender tudo isto, é
necessário fazer a história total deste novo sistema histórico que ganhava
forma e que persiste até aos nossos dias». In
Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação
ao colóquio Le Portugal et le Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães
Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica
de Ciências Sociais, nº 69, 2004.
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