sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

As Origens do Romantismo em Portugal. Álvaro M. Machado. «E é uma tentação a que não resisto, a de começar por afirmar que me parece muito mais legítimo iniciador do romantismo em Portugal um Bernardim Ribeiro do que um Bocage»

Cortesia de wikipedia

Origem e períodologia
«Falar das origens de um período literário, em Portugal como noutro qualquer país, é sempre, de certo modo, pôr em questão as próprias origens da literatura. Ou melhor: é sempre repensar o significado da escrita nas suas múltiplas relações com o tempo. É sempre, é sobretudo, por um lado, avaliar a escrita como expressão temporal do pensamento humano e, por outro lado, como expressão temporal daquilo que, vindo do pensamento, pode ou não pode ser considerado objecto estético. E sendo-o, avaliar a sua importância ao nível, sobretudo, da formação, da continuidade ou da ruptura dos géneros. Ora, como diz Henri Meschonnic num dos seus mais recentes ensaios: Tout écrivain ne peut pas ne pas hériter d’un genre, mais il le détruit en recréant son oeuvre. Il ne serait pas écriture s’il n’était aussi destruction. Destruição em que sentido? Sobretudo, parece-me, no de ser criada uma certa distância perante o tempo imediato, distância que manifesta essencialmente a causa primeira de toda a verdadeira criação estética: a sua atracção pelo intemporal. Distância que consiste, não só quanto ao problema dos géneros mas, de uma maneira geral, quanto às relações literatura-cultura-história, naquilo a que poderíamos chamar uma estética do exílio, mais intensa, decisiva e fértil nuns períodos do que noutros. O mesmo Meschonnic, nesta vasta e original visão de conjunto da obra de Victor Hugo e do romantismo como tentativa titânica de atingir a totalidade da escrita, põe em relevo o elemento exílio, transpondo o exílio relativo concretamente vivido num espaço e num tempo determinados, para o exílio como absoluto da escrita: Du point de vue de l’écriture, l’exil est un aboutissement.
Consequentemente, as origens de um determinado período literário considerado no seu todo de evolução têm muito a ver com o que precisamente nega esse período literário e o seu pretenso valor evolutivo. Ou seja, com aquilo a que chamei estética do exílio. À qual poderíamos chamar ainda estética da transição (não de) ou do instante. No caso das origens do romantismo, somos levados a tentar definir um período considerado especialmente transitório a que se convencionou chamar pré-romantismo. O transitório, aqui, será mais do que nunca essencial porque se trata sobretudo, precisamente, de opor aos modelos de um classicismo que é temporalidade bem estruturada os de uma estética do instante extremamente variável de género para género, de escritor para escritor, de país para país, mas que tem um elemento comum: o da consciência da sua precariedade e do reconhecimento, por vezes trágico, de que o seu único (e grande) valor é justamente o de ser precária. Le préromantisme est assombri par la conscience de l’évanouissement de l’instant, diz com extremo rigor Georges Poulet.
Paralelamente a este elemento congregador, há aqui mais do que nunca que ter em consideração o relativismo dos conceitos de evolução e de nacionalidade. Por isso, só um método de pesquisa especificamente comparativista nos poderá ajudar a melhor compreender as ínfimas gradações de uma transformação geral da escrita que é, apesar de tudo, mais prolongamento de do que reacção contra. Assim, no primeiro capítulo, será dada extrema importância à comparação das variadas origens do romantismo europeu, procurando-se descobrir um mínimo de unidade estético-cultural básica nessa variedade.

Bocage... Ou Bernardim Ribeiro?
O segundo capítulo, ao transpor para Portugal a análise comparativista da formação do romantismo europeu, incide principalmente em Bocage, embora apresente cronologicamente os principais pré-românticos portugueses. Se é dado maior relevo a Bocage, isso deve-se ao facto de ele representar, quanto a mim, a maior parte das características e também das limitações não só do nosso pré-romantismo mas do nosso romantismo em geral. E é uma tentação a que não resisto, a de começar por afirmar que me parece muito mais legítimo iniciador do romantismo em Portugal um Bernardim Ribeiro do que um Bocage. Senão, repare-se, por exemplo, na densidade obsessiva de imagens como a da água, tão à maneira de Rousseau, em Menina e Moça: é o ribeiro, cujo correr nas noites caladas (…) tolhe o sono; é o mar, cujas águas, contrastando com a quietude das serras e acompanhando a solidão do herói, nunca estão quedas, etc. É também o culto obsessivo do eu, um eu que se procura na solidão da natureza (muito para lá do próprio romanesco da intriga) e que se revela, numa permanente metamorfose, longe dos outros e de mim ainda mais longe. É ainda, através da sombra de esquecimento, o culto do efémero e da sua plenitude, o culto dessa mudança que possui tudo. É, enfim, esse conflito sentir-pensar, que irá atormentar António Nobre, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, o próprio Pascoaes, essa dor do pensamento que está, de noite e de dia / entre tormento e tormento.
Dir-me-ão que também Camões assim se exprimia, ou quase. Mas falta o quase. E a liberdade de escrita é em Bernardim Ribeiro muito maior, cultivando o fragmentário e fundindo prosa e poesia numa visão cósmica a que não falta a reflexão filosófica. Neste sentido, direi mesmo que Menina e Moça, livro iniciático, poderá ser comparado a Heinrich von Ofterdingen de Novalis. Por outro lado, forçoso é reconhecer que nesta liberdade muito há de renascentista, o que de resto não admira, dado que o maior pré-romântico, ou melhor, o supremo modelo dos românticos na Europa (não em Portugal) foi Shakespeare. Acrescente-se que o neoplatonismo renascentista propiciava um certo culto pré-romântico da imagem como veículo da imaginação liberta do rígido conceptualismo medievalista». In Álvaro Manuel Machado, As Origens do Romantismo em Portugal, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1979.

Cortesia de ICamões/JDACT