Origem e períodologia
«Falar das origens de um
período literário, em Portugal como noutro qualquer país, é sempre, de certo modo,
pôr em questão as próprias origens da literatura. Ou melhor: é sempre repensar
o significado da escrita nas suas múltiplas relações com o tempo. É sempre, é sobretudo,
por um lado, avaliar a escrita como expressão temporal do pensamento humano e,
por outro lado, como expressão temporal daquilo que, vindo do pensamento, pode
ou não pode ser considerado objecto estético. E sendo-o, avaliar a sua
importância ao nível, sobretudo, da formação, da continuidade ou da ruptura dos
géneros. Ora, como diz Henri Meschonnic num dos seus mais recentes
ensaios: Tout écrivain ne peut pas ne pas hériter d’un genre, mais il
le détruit en recréant son oeuvre. Il ne serait pas écriture s’il n’était
aussi destruction. Destruição em
que sentido? Sobretudo, parece-me, no de ser criada uma certa distância
perante o tempo imediato, distância que manifesta essencialmente a causa primeira
de toda a verdadeira criação estética: a sua atracção pelo intemporal.
Distância que consiste, não só quanto ao problema dos géneros mas, de uma
maneira geral, quanto às relações literatura-cultura-história, naquilo a que
poderíamos chamar uma estética do
exílio, mais intensa, decisiva e fértil nuns períodos do que
noutros. O mesmo Meschonnic, nesta vasta e original visão de conjunto da
obra de Victor Hugo e do romantismo como tentativa titânica de atingir a
totalidade da escrita, põe em relevo o elemento exílio, transpondo o exílio relativo concretamente vivido
num espaço e num tempo determinados, para o exílio como absoluto da escrita: Du
point de vue de l’écriture, l’exil est un aboutissement.
Consequentemente, as
origens de um determinado período literário considerado no seu todo de evolução
têm muito a ver com o que precisamente nega esse período literário e o seu pretenso
valor evolutivo. Ou seja, com aquilo a que chamei estética do exílio. À qual poderíamos chamar ainda estética
da transição (não de) ou do instante. No caso das origens do romantismo, somos levados a
tentar definir um período considerado especialmente transitório a que se
convencionou chamar pré-romantismo.
O transitório, aqui, será mais do que nunca essencial porque se trata
sobretudo, precisamente, de opor aos modelos de um classicismo que é
temporalidade bem estruturada os de uma estética do instante extremamente
variável de género para género, de escritor para escritor, de país para país, mas
que tem um elemento comum: o da consciência da sua precariedade e do
reconhecimento, por vezes trágico, de que o seu único (e grande) valor é
justamente o de ser precária. Le préromantisme est assombri par la
conscience de l’évanouissement de l’instant, diz com extremo rigor Georges
Poulet.
Paralelamente a este
elemento congregador, há aqui mais do que nunca que ter em consideração o relativismo
dos conceitos de evolução e de nacionalidade. Por isso, só um método de
pesquisa especificamente comparativista nos poderá ajudar a melhor compreender
as ínfimas gradações de uma transformação geral da escrita que é, apesar de
tudo, mais prolongamento
de do que reacção contra.
Assim, no primeiro capítulo, será dada extrema importância à comparação das
variadas origens do romantismo europeu, procurando-se descobrir um mínimo de
unidade estético-cultural básica nessa variedade.
Bocage... Ou Bernardim Ribeiro?
O segundo capítulo, ao
transpor para Portugal a análise comparativista da formação do romantismo europeu, incide
principalmente em Bocage, embora apresente cronologicamente os
principais pré-românticos portugueses. Se é dado maior relevo a Bocage,
isso deve-se ao facto de ele representar, quanto a mim, a maior parte das
características e também das limitações não só do nosso pré-romantismo mas do nosso romantismo em geral. E é uma
tentação a que não resisto, a de começar por afirmar que me parece muito mais
legítimo iniciador do romantismo em Portugal um Bernardim Ribeiro do que um Bocage. Senão, repare-se, por exemplo,
na densidade obsessiva de imagens como a da água, tão à maneira de Rousseau,
em Menina e Moça: é o ribeiro, cujo correr nas noites caladas (…) tolhe o sono; é o mar, cujas águas, contrastando
com a quietude das serras e acompanhando a solidão do herói, nunca estão quedas, etc. É também o
culto obsessivo do eu, um eu que se procura na solidão da
natureza (muito para lá do próprio romanesco da intriga) e que se
revela, numa permanente metamorfose, longe dos outros e de mim ainda mais longe. É ainda, através da sombra de esquecimento, o culto do efémero e da sua plenitude, o culto
dessa mudança que possui tudo. É,
enfim, esse conflito sentir-pensar, que irá atormentar António Nobre, Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, o próprio Pascoaes, essa dor do pensamento que está, de noite e de dia / entre
tormento e tormento.
Dir-me-ão que também Camões assim se exprimia, ou quase. Mas
falta o quase. E a liberdade de escrita é em Bernardim Ribeiro
muito maior, cultivando o fragmentário e fundindo prosa e poesia numa visão
cósmica a que não falta a reflexão filosófica. Neste sentido, direi mesmo que Menina e Moça, livro iniciático,
poderá ser comparado a Heinrich von Ofterdingen de Novalis. Por
outro lado, forçoso é reconhecer que nesta liberdade muito há de renascentista,
o que de resto não admira, dado que o maior pré-romântico, ou melhor,
o supremo modelo dos românticos na Europa (não em Portugal) foi Shakespeare.
Acrescente-se que o neoplatonismo renascentista propiciava um certo culto
pré-romântico da imagem como veículo da imaginação liberta do rígido
conceptualismo medievalista». In Álvaro Manuel Machado, As Origens do
Romantismo em Portugal, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto
Camões, Livraria Bertrand, 1979.
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