«(…) Magalhães Godinho
formula a pergunta, o que é que significa
descobrir? e dá-nos duas respostas bastante diferentes. Por um lado:
- Descobrir, descoberta, portanto revelação das partes escondidas do mundo, a conjunção do Oriente e do Ocidente, a busca de novos caminhos e de novas paragens e gentes, culminando no encontro e na exploração metódica (achamento, descobrimento) de novos mundos, suscitando o espanto da novidade.
E, por outro lado:
- Descobrir: construir o espaço operacional; por conseguinte, instrumentos físicos, a bússola, o astrolábio, a sonda, a corda de nós, o compasso, modos de agir sobre o real, mas também a ferramenta mental de trigonometria da toleta de marteloio, o sistema de referenciais e coordenadas, a preocupação da medida, a precisão descritiva. Construção do espaço ligada à construção do tempo, as estações das viagens, as horas das marés, a duração dos percursos de ida e de volta, os prazos dos pagamentos e das letras ou dos contratos; a transmissão de notícias vindas frequentemente de muito longe e por caminhos difíceis (da Índia a Portugal, com passagem por Ormuz e pelo Cairo, ou Damasco, e o Mediterrâneo).
Nestas duas definições,
separadas por apenas quatro páginas, Magalhães Godinho aponta
sucessivamente para as bases concretas da descoberta
e para o seu impacto sócio-cultural sobre os dois lados desse encontro, um encontro,
não o esqueçamos, que é imposto, frequentemente, contra a vontade dos que são
assim descobertos, um encontro que trouxe tantos males como bens, um encontro que
não foi nem absorvido nem apreciado plenamente até aos nossos dias. Proponho-me
desenvolver três temas propostos por Magalhães Godinho na sua colecção de
ensaios que intitulou Sobre teoria da história e historiografia: a
história tornou-se geográfica; a história fala de uma actividade pluridimensional,
mas única; o passado relativiza-se no presente.
A história é geográfica
A história torna-se hoje geográfica. Não se trata já desta velha
história nem desta velha geografia. A história torna-se hoje geográfica porque
transpõe para o passado o problema que a geografia humana encara no presente:
as relações entre o meio fisico-biológico e as sociedades humanas.
Desagregaram-se, para a historiografia, os gigantescos blocos
espácio-temporais, com características imutáveis, a civilização egípcia, a
civilização helénica, a civilização medieval, corroídos pelo sentido evolutivo.
De igual modo estalaram as molduras dessas
civilizações. Não há que transpor para o passado as realidades geográficas de
hoje; há, sim, que estabelecer a própria história do meio físico-biológico e
das relações com os diferentes povos. In Godinho, 1971
Estabelecer as relações
entre as realidades físico-biológicas e a história humana, uma reivindicação
basilar da tradição dos Annales, faz parte do ataque desta às
simplificações da velha história,
baseada em acontecimentos, puramente político-diplomática, e da velha
geografia, que ignorava largamente o impacto fundamental da vida social humana
sobre a Terra. No início do século XXI, num momento em que floresce a história
ambientalista, uma tal afirmação parece banal. Mas mesmo hoje em dia a luta
para que se leve a sério esta simbiose não está concluída. Há 30 ou 40 anos,
raras eram as revistas, os historiadores que seguiam essa exigência.
Parece claro que a
ecologia não é uma essência, mas uma existência, o resultado da interacção
perpétua entre todos os elementos diversos que existem no universo e, mais
particularmente, na nossa Terra. Tudo o que foi fundamental na história humana,
a criação das ferramentas, as agriculturas, a mecanização, o controlo das
energias, transforma a Terra, valoriza e/ou desestabiliza ou destrói formas de
vida animais e vegetais, reestrutura a geografia e a geologia, utiliza e esgota
recursos minerais. Nenhuma acção humana é neutra ou sem consequências. Mas
recordemos a insistência de Magalhães Godinho na ruptura dos séculos XV e XVI,
ruptura social para a humanidade. Que
impacto teve esta ruptura sobre as relações entre o mundo físico-biológico e o
mundo humano? Ela foi também uma
ruptura ecológica? Vejamos. Essa ruptura transformou a estrutura
ecológica da Terra de duas maneiras: a
reorganização espacial da produção primária; a destruição maciça dos elementos produtivos da Terra. Nem uma nem
outra foi inventada pelo mundo moderno. Mas a extensão e rapidez destas
transformações e a irreversibilidade de uma parte delas, sem a mínima discussão
colectiva sobre os seus benefícios e malefícios, deixa qualquer analista sério
estupefacto». In Immanuel
Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le
Portugal et le Monde; Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho,
Paris, 2003, Revista Crítica de
Ciências Sociais, nº 69, 2004.
Cortesia de wikipedia/JDACT