segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Guerra. Diplomacia e mapas. A Guerra da Sucessão Espanhola. O Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Júnia Ferreira Furtado. «Foi na Carte de l’Amérique Méridionale que estes dois oráculos, Luís da Cunha, mestre na arte da política e da diplomacia, e D’Anville, hábil no exercício da geografia, se encontraram»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«Este artigo aborda as conexões que se estabelecem no século XVIII entre a guerra e a diplomacia, de um lado, e, de outro, a cartografia, no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714) e do Tratado de Utrecht que veio pôr fim aos diferendos surgidos. Toma como ponto de partida a colaboração estabelecida entre o diplomata português Luís da Cunha e o geógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville, para a elaboração da Carte de l’Amérique méridionale, de 1748, com o objectivo de nortear as negociações de fronteiras entre Espanha e Portugal de seus territórios na América».

O mapa e seus autores
«Em Madrid caía a noite de 18 de Agosto de 1747 quando um apressado viajante adentrou os muros da cidade. Estava empoeirado e cansado depois de uma viagem acelerada desde Paris, pois o seu encargo era levar com rapidez a correspondência de Luís da Cunha, famoso embaixador de Portugal que, na primeira metade do século XVIII, servira nas mais diversas cortes europeias, e que então ocupava o posto na França. O correio trazia as cartas por ele enviadas ao visconde de Vila Nova de Cerveira, embaixador português na Espanha. Junto a estas, bem preso às costas, ainda trazia, com o maior cuidado, como antes de partir lhe advertira Luís da Cunha, um canudo de papelão. No seu interior, estava um mapa manuscrito da América do Sul, que vinha acompanhado de uma carta, ambos de autoria de Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, então geógrafo do rei da França. Tratava-se de um manuscrito da Carte de l’Amérique Méridionale, produzida para o uso privado do duque de Orleans, que retratava o continente de forma elaborada e detalhada, e que seria impressa em 1748, tendo sofrido, a partir desse ano, sucessivas reimpressões, que acrescentaram pequenas modificações. Esta carta havia sido produzida em estreita colaboração com o embaixador Luís da Cunha.
Luís da Cunha foi figura emblemática da política interna e externa de Portugal na primeira metade do século XVIII, sob o reinado de João V. A serviço da Coroa, viveu quase toda a sua vida no estrangeiro, servindo como embaixador nas grandes cortes da Europa e participando, directa ou indirectamente, dos grandes acordos diplomáticos de seu tempo. Era um homem instruído, grande observador e crítico da realidade, advogando uma transformação na inserção de Portugal na orquestra política das nações europeias e também na sua relação com suas conquistas ultramarinas, especialmente com o Brasil. Apesar de distante do reino, o embaixador manteve intensa e ininterrupta correspondência com os principais artífices e pilares da política portuguesa de seu tempo, municiando-os com seus conselhos. A partir de sua visão de mundo e acreditando ser um oráculo de João V, buscou fundar toda uma agenda a ser seguida por Portugal nos anos vindouros. Entre tantos temas, seus escritos propunham um redimensionamento do papel do Brasil no interior do império. Parte dessa tarefa significava ter um melhor conhecimento da geografia dessa conquista e, para isso, contribuiu para a produção de mapas mais precisos. É neste contexto que se insere a Carte de l’Amérique méridionale.
Em 1802, no elogio escrito à Notice des Ouvrages de M. D´Anville, o barão Joseph Dacier afirmou que D’Anville era reconhecido pelos savants e viajantes de seu tempo, como oráculo da Geografia. Atestando sua enorme contribuição, a Notice atribuía como de sua autoria mais de 211 mapas manuscritos e impressos e 23 obras sobre essa ciência. Parte significativa da comunidade intelectual, para além da França e de seu próprio tempo, ressaltou o importante papel que desempenhou nesse campo de conhecimento. Condorcet (1743-1794) foi um dos que afirmou que todas as nações concordam em considerá-lo o primeiro geógrafo da Europa. D’Anville era um geógrafo de gabinete. Isto é, nem imprimia mapas, nem realizava as medições dos terrenos que representava em suas cartas. Seu papel na rede de profissionais envolvidos com a feitura dos mapas era a de compilar todas as informações geográficas disponíveis, colectadas por outros, submetê-las à sua crítica severa, e, a partir delas, traçar a carta que seria, então, impressa e comercializada por terceiros. Foi na Carte de l’Amérique Méridionale que estes dois oráculos, Luís da Cunha, mestre na arte da política e da diplomacia, e D’Anville, hábil no exercício da geografia, se encontraram. O geógrafo queria que seu mapa contribuísse para o maior conhecimento do território sul-americano e o embaixador pretendia que servisse para subsidiar as negociações diplomáticas, em curso em Madrid, com vistas a definir as fronteiras entre Portugal e Espanha na América, que se encontravam em litígio desde a Guerra da Sucessão Espanhola. Tendo esse mapa como ponto de partida e de chegada, este artigo busca discutir as vinculações entre, de um lado, a cartografia e, de outro, a guerra e a diplomacia, tendo como pano de fundo a Guerra da Sucessão Espanhola». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, a Guerra da Sucessão Espanhola, o Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v. 12, nº 23, 2011.

Cortesia de Topoi/JDACT