quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa. Álvaro Manuel Machado. «Eis porque os célebres versos de Pessoa “depois de estar a Índia descoberta” ficamos todos “sem trabalho”, para lá do seu tom de “boutade”, encerram uma verdade ainda actual, verdade que só o mito literariamente elaborado pode conferir»

Cortesia de wikipedia

Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.

Mito do oriente e herança. Renascentista dos descobrimentos
«(…) À partida há, no entanto, uma questão que, precisamente por concretas razões históricas, se põe com inteira lógica: porquê o Oriente e não a África? Porque é que João de Barros, Diogo do Couto ou Fernão Mendes Pinto, no domínio da crónica histórica e do relato de viagem, Camões, Bocage, Camilo Pessanha, António Patrício ou Fernando Pessoa, no domínio da poesia, tornam o Oriente tema significativo das suas obras, mal referindo, ou fazendo-o convencionalmente, a nossa passagem por África, não a tornando nunca matéria de cristalização mítica? Claro, teremos de fazer distinções decisivas: enquanto que para João de Barros, Camões e, sobretudo, Diogo do Couto, o Oriente é determinadamente a Índia, uma Índia de plenitude perdida, facto histórico mais tarde evocado dramaticamente por Bocage e ironicamente por Pessoa, em termos de equivalente nostalgia, para um Fernão Mendes Pinto o Oriente é mais vasto, fixando-se a sua atenção num conceito de civilização superior, a chinesa, uma civilização decididamente oposta à da nossa moral (ou falta de moral) imperialista degradada, pretensamente heróica e herdada em linha recta de gregos e romanos, tal como João de Barros ainda a idealizara. Paralelamente, poderíamos notar que as alusões ao Oriente de um Antero se situam num plano de mais abstracta elaboração do pensamento filosófico, mais propriamente metafísico, embora correspondam de acto a um refúgio intelectual explicável, correspondam a uma propositada distância perante a história do seu tempo, que é a atitude final da geração de que foi mestre incontestável, a Geração de 70. Paralelamente ainda, o orientalismo de Wenceslau Moraes tem um carácter enciclopédico e didáctico que não chega a atingir o nível mítico, enquanto que o Oriente de Camilo Pessanha ou de António Patrício, se alude por vezes ao passado histórico português, não se situa concretamente, ao contrário do de Wenceslau, num espaço e num tempo bem determinados, entregando-se ao nebuloso fluir de um tempo cristalizado pelas sensações mais íntimas e vagas, embora ambos tenham de facto experimentado o Oriente, vivido e até morrido lá.
Enfim, o Oriente de Almada Negreiros é apenas o de um esoterismo de aprendizagem modernista e sensacionalista. Todavia, se tentarmos minimamente encontrar uma raiz comum a estas múltiplas atitudes estéticas e, num sentido lato, históricas e culturais, veremos que para a maioria destes escritores, embora em graus de valor diferentes, o Oriente, e não África, passou de tema a mito porque derivou daquilo a que poderíamos chamar um trauma nacional: a perda da nossa oportunidade histórica de transpor para o Oriente o que do Ocidente renascentista aprendêramos. A perda de uma herança renascentista que a velha civilização oriental enriqueceria culturalmente, herança que ficou para sempre perdida, acção que ficou para sempre incompleta, perda moral que a perda da independência nacional com a morte do rei Sebastião só veio tragicamente concretizar. Eis porque os célebres versos de Pessoa depois de estar a Índia descoberta ficamos todos sem trabalho, para lá do seu tom de boutade, encerram uma verdade ainda actual, verdade que só o mito literariamente elaborado pode conferir.
Consequentemente, o período renascentista português dos Descobrimentos parece-me ser o período da cristalização do mito do Oriente na nossa literatura. Daí que o analise mais detalhadamente, em termos de história da cultura em geral e do conceito de mito literário em particular. A abordagem global, dos períodos literários e dos autores que se seguiram até ao nosso século, ou, mais propriamente, até ao chamado Primeiro Modernismo da geração de Orfeu, com destaque para Fernando Pessoa, tem apenas a função de reforçar essa abordagem inicial aprofundada das fontes e de tentar assim explicar a evolução do mecanismo mítico desencadeado nessa prodigiosa época dos Descobrimentos.

Oriente e mitologia dos Descobrimentos. De João de Barros a Bocage
O Renascimento. O Humanismo europeu e o Oriente
Não será talvez despropositado lembrar, numa primeira visão geral da intervenção do Oriente na formação do humanismo renascentista europeu, alguns factores elementares. Primeiro, pura e simplesmente, o facto conhecido por todos de que se data o começo do Renascimento da tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, pondo-se assim fim ao império romano do Oriente. Segundo, que, quase simultaneamente, o alemão Gutenberg, na esteira do holandês Laurent Coster, introduziu na Europa os caracteres móveis de imprensa, sendo o papel que substitui o pergaminho de origem chinesa e já conhecido pelos árabes desde o século VIII». In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho da Europa, Lisboa, 1983.

Cortesia de ICamões/JDACT