Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com
que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.
Mito do oriente e herança. Renascentista dos descobrimentos
«(…) À partida há, no
entanto, uma questão que, precisamente por concretas razões históricas, se põe
com inteira lógica: porquê o Oriente e
não a África? Porque é que João de Barros, Diogo do Couto ou Fernão
Mendes Pinto, no domínio da crónica histórica e do relato de viagem, Camões,
Bocage, Camilo Pessanha, António Patrício ou Fernando Pessoa, no domínio da
poesia, tornam o Oriente tema significativo das suas obras, mal referindo, ou
fazendo-o convencionalmente, a nossa passagem por África, não a tornando nunca matéria de
cristalização mítica? Claro, teremos de fazer distinções decisivas: enquanto
que para João de Barros, Camões e, sobretudo, Diogo do Couto,
o
Oriente é determinadamente a Índia, uma Índia de plenitude perdida,
facto histórico mais tarde evocado dramaticamente por Bocage e ironicamente por
Pessoa, em termos de equivalente nostalgia, para um Fernão Mendes Pinto
o Oriente é mais vasto, fixando-se a sua atenção num conceito de civilização
superior, a chinesa, uma civilização decididamente oposta à da nossa
moral (ou falta de moral) imperialista degradada, pretensamente heróica
e herdada em linha recta de gregos e romanos, tal como João de Barros ainda a idealizara.
Paralelamente, poderíamos notar que as alusões ao Oriente de um Antero
se situam num plano de mais abstracta elaboração do pensamento filosófico, mais
propriamente metafísico, embora correspondam de acto a um refúgio intelectual
explicável, correspondam a uma propositada distância perante a história do seu tempo,
que é a atitude final da geração de que foi mestre incontestável, a Geração
de 70. Paralelamente ainda, o orientalismo de Wenceslau Moraes
tem um carácter enciclopédico e didáctico que não chega a atingir o nível mítico,
enquanto que o Oriente de Camilo Pessanha ou de António Patrício,
se alude por vezes ao passado histórico português, não se situa concretamente,
ao contrário do de Wenceslau, num espaço e num tempo bem determinados,
entregando-se ao nebuloso fluir de um tempo cristalizado pelas sensações mais
íntimas e vagas, embora ambos tenham de facto experimentado o Oriente, vivido e até morrido lá.
Enfim, o Oriente
de Almada Negreiros é apenas o de um esoterismo de aprendizagem
modernista e sensacionalista. Todavia, se tentarmos minimamente encontrar uma raiz
comum a estas múltiplas atitudes estéticas e, num sentido lato, históricas e
culturais, veremos que para a maioria destes escritores, embora em graus de
valor diferentes, o Oriente, e não África, passou
de tema a mito porque derivou daquilo a que poderíamos chamar um trauma nacional: a
perda da nossa oportunidade histórica de transpor para o Oriente o que do
Ocidente renascentista aprendêramos. A perda de uma herança renascentista
que a velha civilização oriental enriqueceria culturalmente, herança que ficou para sempre perdida,
acção que ficou para sempre incompleta, perda moral que a perda da
independência nacional com a morte do rei Sebastião só veio tragicamente
concretizar. Eis porque os célebres versos de Pessoa depois de estar a Índia
descoberta ficamos todos sem trabalho, para lá do seu tom de boutade, encerram uma verdade
ainda actual, verdade que só o mito literariamente elaborado pode conferir.
Consequentemente, o
período renascentista português dos Descobrimentos parece-me ser o período da
cristalização do mito do Oriente na
nossa literatura. Daí que o analise mais detalhadamente, em termos de história
da cultura em geral e do conceito de mito literário em particular. A abordagem
global, dos períodos literários e dos autores que se seguiram até ao nosso
século, ou, mais propriamente, até ao chamado Primeiro Modernismo da geração
de Orfeu, com destaque para Fernando Pessoa, tem apenas a função de
reforçar essa abordagem inicial aprofundada das fontes e de tentar assim
explicar a evolução do mecanismo mítico desencadeado nessa prodigiosa época dos
Descobrimentos.
Oriente e mitologia dos
Descobrimentos. De João de Barros a Bocage
O Renascimento. O Humanismo europeu e o Oriente
Não será talvez despropositado lembrar, numa primeira visão geral da intervenção do Oriente na formação
do humanismo renascentista europeu, alguns factores elementares. Primeiro,
pura e simplesmente, o facto conhecido por todos de que se data o começo do Renascimento
da tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, pondo-se assim fim ao império romano do Oriente. Segundo,
que, quase simultaneamente, o alemão Gutenberg, na esteira do holandês Laurent
Coster, introduziu na Europa os caracteres móveis de imprensa, sendo o papel que substitui o pergaminho
de origem chinesa e já conhecido pelos árabes desde o século VIII». In
Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho da
Europa, Lisboa, 1983.
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