Cartas do Japão. 23 de Abril de 1902
«(…) Estamos em plena
primavera, esplendida, attrahindo aos logares mais pittorescos milhares e milhares
de visitantes; a peregrinação começa com a florescência das ameixoeiras, em principio
de março, seguindo-se os pecegueiros, as cerejeiras, as azáleas, um nunca acabar
de encantos naturaes, podendo dizer-se que a população inteira passa n'esta quadra
a vida na rua, de aldeia em aldeia, de collina em collina, em extasis bucólicos;
agradável diversão aos rigores do inverno, que foi este anno bastante benigno, mas
não tanto que não deixasse de si uma pungente lembrança. Refiro-mo a um temporal
de neve ao norte do paiz, cerca de Owomori, ocasionando a morte de quasi todo um
batalhão de infanteria (mais de 200 homens), que largara imprudentemente o seu quartel,
em excursão de exercício. A neve, abundantíssima, surpreendeu esses homens em pleno
campo, impedindo-os de proseguirem ou de retrocederem, morrendo quasi todos. O commandante
da força, o major Yamaguchi, foi depois encontrado ainda com vida, rodeado de
cadáveres de soldados, que lhe faziam barreira, indicando isto que elles intentaram,
antes de tudo, abrigar do frio e salvar o seu chefe, sacrificando-se. O major falleceu
poucos dias depois, n'um hospital, e sabe-se que recebera antes uma carta do próprio
pai, que lhe dizia ter por provável que a morte o não pouparia reservando-lhe igual
sorte á dos seus subordinados; mas, se assim não acontecesse, aconselhava-o a suicidar-se,
como expiação honrosa pela falta que praticara… Exemplos d'estes, restos do antigo
cavalheirismo militar do Japão, estão ainda longe de ser raros, e fazem da cada
japonez o melhor soldado do mundo, no respeitante a orgulho de classe, patriotismo
sem limites, temeridade, desprezo pela vida. A guerra com a China, em 1895, e os últimos acontecimentos no império
chinez, onde se encontraram juntas tropas europeias e japonezas, bem confirmam esta
opinião.
Interessado n'uma campanha,
que não se me affigura banal, de chamar a attenção dos portuguezes para esteja muito
florescente império do Extremo Oriente, que tão pouco conhecemos, prometti dar a
indicação dos géneros que, em minha opinião, devem particularmente servir para estreitar
as relações de commercio directo entre Portugal e o Japão. Tratarei hoje dos
géneros portugueses, que são: vinhos (generosos, espumosos e communs), cortiça
(bruta e em obra), conservas alimentícias (sardinhas, fructas, etc), azeites,
vários produtos coloniaes, como borracha, marfim, café. O Japão
importa já bastantes vinhos generosos e espumosos, em geral para consumo dos europeus
residentes e da chusma de visitantes dos hotéis de Yokohama, de Kobe e de Nagasaki.
Os nossos vinhos são conhecidos, uns importados, em mui pequena quantidade, directamente
de Portugal, outros, em maior quantidade, vindos por intermédio de vários
paizes estrangeiros, e outros, em muito maior proporção, portuguezes só no
nome, chamados Porto, Madeira, etc, quando são fabricados na Allemanha
ou na Inglaterra. Os nossos negociantes devem, sem demora emprehender
tenazmente a introducção aqui, directa, das boas marcas dos vinhos portuguezes,
não regateando sacrifícios, que mais tarde se traduzirão em prospero e remunerador
trafego.
Os japonezes, em geral,
e particularmente o proletário, não apreciam, é claro, os bons vinhos europeus e
americanos, contentando-se com o saké
indígena, que é o producto da fermentação do arroz. No emtanto, os vinhos inferiores,
ínfimos mesmo, téem aqui bastante acceitação, servindo a preparar uma beberagem
adocicada e tida por fortificadora, muito apreciada entre o povo. Taes vinhos vêem
da Hespanha, da França, da Itália e de outros paizes; mas não do nosso. Algumas
casas hespanholas de Yokohama e de Kobe fazem bello negocio com o género. Ora, não
valeria a pena que os nossos negociantes estudassem o assumpto, as qualidades e
preços do artigo, no intuito de introduzirem no Japão os vinhos baratos portuguezes?»
In
Wenceslau de Moraes, Cartas do Japão, Antes da Guerra (1902-1904), prefácio de
Bento Carqueja, Livraria Magalhães & Moniz, Editora, Oficinas do Comércio
do Porto, Porto, 1904.
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