Por terra jaz o empório do Oriente,
..........................................................
Oh séculos de heróis! Dias de glória!
Varões excelsos, que apesar da morte
viveis na tradição, viveis na
história!
In Bocage
Tema, mito, memória colectiva
«As obras dos três
autores citados, João de Barros, Bocage e Fernando Pessoa, na temática essencial
que as norteia em épocas bem diversas da nossa literatura, e no que esta tem de
mais universal, justificariam só por si o tema deste ensaio. De facto, embora
em graus diferentes de apropriação literária de um mito espacial que percorre a
nossa história desde a época áurea dos Descobrimentos, o de um Oriente longínquo
que nos definiu como um povo fazendo parte de todo um movimento de abertura
civilizacional da Europa no período do Renascimento, essas obras reflectem
igualmente a história de uma cultura sui generis. Seria
inimaginável que, por exemplo, um ensaio sobre a história da literatura em
França pudesse fazer do tema do Oriente, importante sem dúvida de Montesquieu a
Claudel passando por Nerval ou Baudelaire, um tema tão obsessivamente
recorrente, tão enraizado na cultura francesa que se pudesse legitimamente
considerá-lo um mito. E aqui
há, desde já, uma distinção a fazer, distinção que em verdade faz parte da
metodologia básica por mim utilizada neste ensaio como noutros, ou seja, a de uma
certa abordagem comparativista: distinção entre tema e mito.
Esquematicamente, poderá dizer-se que enquanto um tema se circunscreve à
explicação imediata,
descritiva do texto literário, ordenando-o estritamente em função dos géneros e
dos períodos em suma, em função da diacronia literária (ainda que numa perspectiva
comparativista), o mito eleva o tema a um nível de
catarse (no sentido propriamente aristotélico), tornando-o um elemento
sincrónico. Assim, o estudo temático pode confundir-se, e de facto confunde-se frequentemente,
com o estudo da imagem do estrangeiro,
implicando uma pesquisa de fontes e influências. E então poderíamos, no caso
presente, pensar num enunciado lógico, que seria: A imagem do Oriente na literatura portuguesa. Todavia,
não se trata de uma imagem do estrangeiro, tal como se pode, por exemplo,
pensar na imagem da França na literatura portuguesa, sobretudo desde o século XVIII.
Trata-se, muito concretamente, muito exactamente, da elaboração cultural de um tema tornado
propriamente mito. Trata-se
da elaboração desse tema a nível de um tempo circular e de uma história tornada
História, quer dizer, conservando um valor ético colectivo através dos séculos.
Em suma: trata-se de um tema derivado dessa memória colectiva que
conserva e transmite acontecimentos históricos tornados exemplares, esse inconsciente
colectivo jungiano. E aqui permito-me remeter o leitor para um livro de
introdução à metodologia básica da Literatura Comparada, escrito por mim
em colaboração com Daniel-Henri Pageaux, director do Departamento de Literatura
Comparada da Sorbonne, citando desse livro uma passagem que me parece
especialmente elucidativa para justificação do título deste ensaio e dos seus
objectivos: … na origem de todo o mito das nossas sociedades está uma situação de manque; é o que poderia
corresponder, nas sociedades sem escrita e sem história, à violência
fundadora. Para preencher este
manque, este vazio, a sociedade constrói e desenvolve um mito:
um cenário mítico que vai dar sentido ao mundo, que vai recriar a vida do
grupo, que vai dar coerência ao grupo. […]
… da mesma maneira que o mito assegura
uma determinada coerência ao grupo que o aceita, também dá coerência ao texto:
de fundador nos planos histórico, social, religioso, o mito torna-se assim
produtor de texto.
Mito do oriente e herança. Renascentista dos descobrimentos
Ora, quando falamos do
Oriente em relação à história de Portugal e à literatura que reflecte essa história,
estamos de facto numa situação de manque, até no plano da psicanálise de um povo. Trata-se
de um sonho que nunca foi realizado,
como muito justamente escreve Eduardo Lourenço referindo-se, em geral, à
psicanálise mítica do povo
português: … nós éramos grandes, dessa grandeza que os outros percebem de fora e por
isso integra ou representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas
éramos grandes longe, fora
de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.
Assim, o que interessa neste ensaio não é detectar minuciosamente as
sucessivas presenças de um tema literário, mas sim aprofundar a ausência histórica que o determina
e que, através das suas múltiplas transfigurações ao nível da escrita, faz dele
aquilo a que com exactidão se poderá chamar mito. E nem por isso, por essa preocupação com o
mito em si, se irá enjeitar a sua raíz histórica, pois se trata de facto de um mito histórico
no sentido em que António José Saraiva o define ao traçar uma
síntese da nossa cultura, relevando o valor fantasmagórico desencadeado na
memória de um povo por essa função mítica: Os
mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo
define a sua posição e a sua vontade na história do mundo. Essa
raíz histórica, encontrámo-la com facilidade no período dos Descobrimentos: de
João de Barros a Fernando Pessoa, passando por Diogo do Couto, Fernão Mendes
Pinto, Camões, Bocage, Antero, Camilo Pessanha, passando mesmo pelo exotismo
orientalista fin de siècle, um tanto de moda, de um Eça, de um António
Feijó, de um Wenceslau de Moraes ou, a nível programático, de um Eugénio de
Castro». In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho
da Europa, Lisboa, 1983.
Cortesia de ICamões/JDACT