quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Guerra. Diplomacia e mapas. A Guerra da Sucessão Espanhola. O Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Júnia Ferreira Furtado. «… observa-se como os mapas podem ser uma arma importante de persuasão política, tanto no contexto das negociações diplomáticas, quanto das guerras que as precedem»

Cortesia de wikipédia

As fronteiras da América meridional
«(…) O processo de produção da Carte de l’Amérique Méridionale se insere nesse amplo contexto de renegociação das fronteiras entre Portugal e Espanha, que estavam definidas, desde 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Porém, ao longo dos dois séculos seguintes, a ocupação desses territórios não se deu de forma tão homogénea como previra o Tratado. Assim, no século XVIII, os limites entre as duas Coroas estavam em litígio tanto na América do Sul, quanto no mar do Sul (Oceano Pacífico), como foi o caso das Molucas. À medida que este século avançava e Portugal interiorizava o povoamento do Brasil, o Tratado de Tordesilhas se tornava um embaraço cada vez maior para seus propósitos de soberania na América. Ao estabelecer a divisão das novas terras americanas, banhadas pelo Oceano Atlântico, entre as duas Coroas, a partir de uma linha imaginária posicionada a 370 léguas a oeste de uma ilha não especificada do arquipélago de Cabo Verde, Tordesilhas atribuía à Espanha o domínio do centro-oeste da América, que vinha sendo sistematicamente desbravado e ocupado pelos portugueses. A imprecisão da localização do Meridiano punha em dúvida as fronteiras exactas entre as duas Coroas no norte do Brasil, nas bacias dos rios Amazonas, Tocantins e seus afluentes; já no extremo sul, a disputa ficava centrada junto ao rio da Prata, onde se localizava a Colónia do Sacramento. A questão da Colónia do Sacramento foi a pedra de toque das negociações portuguesas e espanholas na primeira metade do século XVIII. Luís Ferrand Almeida afirma que, com a activa participação de Luís Cunha, o problema foi longamente tratado pelos representantes de Portugal em Madrid e também noutras cortes, como Viena e Paris, mas sem conseguirem alterar a posição espanhola.
A imprecisão da posição do meridiano de Tordesilhas, o real povoamento que as duas potências ibéricas estabeleceram nas terras descobertas e as disputas em torno dessas regiões limítrofes na América fizeram surgir em Portugal uma corrente de defensores favoráveis a que os limites entre as duas potências no continente americano e no Oceano Pacífico fossem renegociados em conjunto, posição sistematicamente defendida por Luís Cunha nas diversas negociações em que representou Portugal após a Guerra da Sucessão Espanhola (especialmente durante os Tratados de Utrecht, Cambrai, Breda e Aquisgrán). A Colónia do Sacramento, ocupada pelos portugueses, e as Molucas, no Oceano Pacífico, que haviam sido (injustamente) compradas dos espanhóis, segundo Luís Cunha, seriam as duas grandes moedas de troca entre as duas nações, opinião compartilhada pelo geógrafo francês D’Anville, em parecer que escreveu a seu pedido sobre o tema. Esse processo de renegociação das fronteiras luso-espanholas culminará em 1750 com o estabelecimento do Tratado de Madrid.
Foi no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola e das negociações que lhe seguiram, que também versaram sobre as fronteiras entre Portugal e Espanha, que Luís Cunha se tornou cônscio da necessidade de construir uma base cartográfica sólida que permitisse a Portugal tomar a dianteira perante a Espanha no processo de negociação das suas fronteiras na América. Por esta razão, também tomou para si a incumbência de contribuir para a produção de uma cartografia da América Portuguesa, estabelecendo a partir de 1724, quando residia em Paris, uma profícua colaboração com D’Anville, cuja Carte de l’Amérique Méridionale, é a culminância desse processo. Este foi o primeiro mapa a propor um formato triangular do Brasil, bastante semelhante à feição actual. Nesse sentido, é preciso ficar atento para o facto de que, ao contrário do que usualmente se pensa, não raro, é o mapa que precede o território e não o contrário: esse processo pode-se observar claramente nesse mapa, que constrói uma imagem da América Portuguesa, propondo novos limites de fronteiras, que não correspondiam à realidade da época. D’Anville dava expressão cartográfica às pretensões geopolíticas de Luís Cunha que procurava conformar o território americano de acordo com o que acreditava ser do interesse de Portugal. Nessa perspectiva, observa-se como os mapas podem ser uma arma importante de persuasão política, tanto no contexto das negociações diplomáticas, quanto das guerras que as precedem. Neste artigo, o enfoque se dará na utilização da cartografia no teatro da Guerra da Sucessão Espanhola e na negociação em Utrecht que, pela via da diplomacia, tentou solucionar os diferendos territoriais então surgidos, apontando para a transitividade entre a guerra e a diplomacia com a cartografia.


Guerra e cartografia
No século XVIII, mapas estavam em todas as partes. Sustentavam as guerras com suas campanhas militares, as negociações diplomáticas que se seguiam àquelas, as viagens de exploração das terras desconhecidas, os empreendimentos comerciais ou de prospecção mineral, entre outros fins nos quais eram empregados. Havia um conjunto vasto de temas que poderiam ser mais bem visualizados por meio da linguagem cartográfica, como batalhas, movimentações militares, sítios e fortalezas; por isso, uma das aplicações mais antigas da cartografia era a guerra. Por esta razão, a produção de conhecimento geográfico e a confecção de mapas sempre foram fortemente apoiadas pela Coroa portuguesa. Esta protecção se materializou na precoce criação do cargo de cosmógrafo-mor, responsável por promover o desenvolvimento do conhecimento cosmográfico que permitisse a realização das viagens náuticas. Isso significava fazer observações astronómicas, produzir cartas e portulanos, desenvolver instrumentos astronómicos e marítimos, ensinar e preparar os cosmógrafos». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, a Guerra da Sucessão Espanhola, o Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v. 12, nº 23, 2011.

Cortesia de Topoi/JDACT