Prefácio
«(…) As confissões são apoiadas, suportadas, pelas descrições que os arguidos
fazem sobre o seu modo de viver quotidiano e substancial. Corroboram-se
mutuamente; quando se se contradizem, Jacques Fournier esforça-se por
reduzir tais diferenças; pede precisões aos diversos acusados. O que anima o nosso
prelado é o ideal de uma procura (odiosa, neste caso) da verdade dos factos.
Tata-se de detectar os comportamentos faltosos; trata-se seguidamente, na sua
óptica, de salvat as almas. Para atingir estes objectivos diversos, o bispo
mostra-se meticuloso como um escolástico;
não hesita em levar por diante intermináveis discussões. Gasta quinze dias do
seu precioso tempo a coovencer o judeu Baruch, apresentado em juízo
perante o seu tribunal, do mistério da Santíssima Trindade; oito dias para lhe
fazer admitir a dupla natureza de Cristo; quanto à vinda do Messias, requer
três semanas de comentários, administrados a Baruch, que não precisava de tanto.
No final dos processos são infligidas aos réus diversas penas (prisão mais
ou menos rigorosa, uso de cruzes amarelas, peregrinações, confiscações dos bens).
Apenas cinco acabam a sua vida
na fogueira: entre eles, quatro valdenses de Pamiers e o relapso albigense Guillaume
Fort, de Montaillou.
Os processos e interogatórios de Jacques Fournier assim realizados
foram transcritos em vários volumes. Destes, dois estão actualmente perdidos; um
deles continha as sentenças finais; por sorte, conhecemo-las graças à compilação
de Limborch. Subsiste, em contrapartida, um volumoso registo in-fólio, em pergaminho. Este documento,
aquando da sua confecção original, passou por três estádios: primeito, no
próprio momento do interrogatório e do depoimento, um escrivão redigia à pressa
o protocolo ou rascunho. Este escrivão era nem mais nem menos do que Guillaume
Barthe, notário episcopal, ocasionalmente substituído no caso de se encontrar
ausente, por um dos seus colegas. Guillaume Barthe, também se
encarregava em seguida de redigir, a partir daqueles notas rapidamente tomadas,
à
minuta, num registo em papel...
Ela era apresentada ao acusado que podia
modificar certos termos. Finalmente, vários escribas recopiavam com calma,
em pergaminho, os textos assim minutados.
NOTA: A preparação do texto final do Registo Fournier,
em latim (tal como se encontra no manuscrito latino nº 4030 da Biblioteca
Vaticana), efectuou-se através das etapas que acabo de descrever: coloca
diversos problemas de tradução. Os
acusados exprimiam-se geralmente em occitânico (ou então, em alguns casos,
provavelmente pouco numerosos, em gascão). Os escribas traduziam, portanto, as
palavras dos arguidos, numa certa altura, para Latim. Esta operação tinha lugat
quer no próprio momento de tomat as notas (primeiro estádio), em tradução simultânea; quer (o mais
tardar), aquando da redacção da minuta (segundo estádio). Esta é de
facto, grosso modo, conforme ao texto
final (terceiro estádio) que, por seu lado, aparece redigido em Latim.
O volume que possuímos só foi inteiramente redigido, a limpo, após a nomeação
de Jacques Fournier para a sede episcopal de Mirepoix, em 1326. O que mostra até que ponto o
prelado.tinha a preocupação de conservar este testemunho sobre o seu trabalho de
inquisição em Pamiers. Este registo acompanhou depois Fourniet, que se tornou
Bento XII, até à sua residência em Avinhão. Daí
passou para a Biblioteca Vaticana, onde ainda permanece, entre os manuscritos
latinos, com o número 4030». In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou,
village occitan de 1294 à 1324, Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e
Católicos numa aldeia francesa. 1294-1324, Edições 70, Lisboa.
Cortesia de Edições 70/JDACT