quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Reflexões sobre Herculano como polemista. Óscar Lopes. «… um dos nossos grandes modelos de exposição polémica e doutrinária, um condigno contemporâneo da oratória de José Estêvão, um condigno e reconhecível mestre directo de Antero, e indirecto de António Sérgio ou Raul Proença»

jdact

«(…) Deste modo, as circunstâncias históricas a que Herculano reage, seja o absolutismo miguelista, seja a Revolução de Setembro, seja o encaminhamento do regime liberal no sentido de uma oligarquia bancária (ele diria agiota) e latifundiária, congraçada com a Cúria Romana e assente numa hipertrófica centralização burocrática de pseudo-representatividade parlamentar, essas circunstâncias históricas sucessivas, quando projectadas pelo estilo mais romântico da polémica herculaniana, aparecem superlativadas como num salmo ao Deus javético do Juízo, ou Vingança Final, entoado no desterro da mudável Babel terrestre contemporânea, onde são carpidas as saudades de uma Sião, que pode assumir as feições da infância pessoal ou de uma idealizada liberdade portuguesa quatrocentista sob o rei João I, ou do puro ideal liberal desse seu homólogo rei-soldado, Pedro IV, ,mas cujo axioma fundamental é o da incomensurabilidade cristã, e romântica, entre o exílio de qualquer vida real e a esperança de uma qualquer Jerusalém Celeste. Poderíamos especular sobre as motivações pessoais deste cantor da solidão nas ruínas ou nos ermos do sol-pôr ou da meia-noite, para quem o oceano e o céu, abraçando-se no horizonte, são sobretudo a imagem da eternidade e do infinito, deste extraordinário poeta, em verso e em prosa, da tempestade como metáfora do espírito, sacudindo-se no manto dos elementos da matéria. Aquilo que será mais difícil de pôr em dúvida é que o poeta, o ficcionista e o polemista pretendem contagiar-nos o arrepio sagrado das grandes abominações e punições religiosas, o pathos das aspirações inapaziguáveis, e o bafo do sepulcro a nossos-pés.
As obsessões românticas da morte, do desterro, das crises passionais extremas e irremíveis, das catástrofes sociais apocalípticas, dos aleijões, das enfermidades e de decrepitude encanecida percorrem muitas páginas de Herculano, que hoje nos sensibilizariam ou convenceriam melhor se lhes desse menor altissonância (como é o caso da sua intercessão a favor dos velhos egressos dos conventos, ou das mirradas freiras de Lorvão), e parece incontestável que estes seus ingredientes de magnificação inadequada serviram de modelo ao chamado ultra-romantismo medievista, cemiterial e melodramático de todos os géneros. Ele próprio, Herculano, acabou por reconhecer a inadequação do seu peculiar hiperbolismo no ataque aos Setembristas bem como as fraquezas dos seus romances. Todavia, há um recanto de romantismo supervivente em cada um de nós que ainda vibra perante as equivalências klopstockianas, schillerianas, chateaubriandescas ou burguerianas de Herculano, incluindo os monólogos do seu alter ego transposto à Carteia e aos Montes Cantábricos da Invasão Sarracena. Por outro lado, e ainda dentro deste nosso assunto do estilo polémico, Herculano dispõe de uma outra gama de recursos discursivos que o tornam um dos nossos grandes modelos de exposição polémica e doutrinária, um condigno contemporâneo da oratória de José Estêvão, um condigno e reconhecível mestre directo de Antero, e indirecto de António Sérgio ou Raul Proença.
Em peças como as do debate sobre a propriedade literária com Garrett (1851), a Solemnia Verba endereçada a Magessi Tavares (1850), a discussão do casamento civil com o visconde de Seabra (1865) ou o duelo jornalístico de 1853, com Pedro Lopes Mendonça, sobre as implicações da rede ferroviária ainda em projecto para o futuro (centralizado ou descentralizado) do País e da Península (1853), na polémica com Franciscco Cárdenas sobre a existência, ou não, do feudalismo nas monarquias neogóticas (1875-1877), nestas peças, digo, não se sabe que mais admirar: se a extraordinária urbanidade, que de modo tão visível se impõe a um temperamento confessamente fogoso e irascível, se o belo desenvolvimento de uma estratégia de assalto oportuno a cada posição adversária, utilizando, como em lances de judo, os próprios movimentos lançados do antagonista para o levar ao tapete e à imobilidade, e impondo-se como regras de evidência aquelas que a outra parte usaria se estivesse, ela própria, tão senhora, como Herculano está, dos seus próprios pressupostos ou razões». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Reflexões sobre Herculano como polemista, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.

Cortesia de Caminho/JDACT