terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Busca de Sentido. Questões de Literatura Portuguesa. Óscar Lopes. «Aceitar a morte ‘é traição ao medo porque somos’ (“medo”, outra palavra-chave). Chegaremos às nebulosas mais distantes, porque a ‘morte é deste mundo em que o pecado, a queda a falta originária, o mal / é aceitar, seja o que for rendidos’»

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Imagens do cosmos na poesia portuguesa. A Tabacaria, de Fernando Pessoa
«(…) Toda a acção decorre entre a janela e a cadeira, em que acaba por fumar o seu cigarro. Tudo é dominado pela metafísica, uma consequência de estar mal disposto. É, de facto, a teimosia de recusar todos os sonhos que surjam a um dado homem só, numa rua real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa; escrever versos de depreciação inclusivamente sobre o sentir-se génio como qualquer fala-só, serei sempre o que só tinha qualidades, numa ostensiva autonegação, defronte da Tabacaria, calcando aos pés a consciência de estar existindo. E chega aos versos centrais do poema: Ele [o dono da Tabacaria] morrerá, eu morrerei. / Ele deixará as tabuletas, e eu os versos também. / Depois de certa altura morrerá a rua onde está a tabuleta, / e a língua em que foram escritos os versos. / Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. / Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente / continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas [...] sempre uma coisa defronte da outra [...].

É curioso que Pessoa aceita a multiplicidade dos mundos como uma forma de exteriorizar o tédio de estar defronte, mesmo entre o fundo e a superfície. Sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem uma coisa nem a outra. Todo o poema corresponde à mesma neurastenia, com a possível excepção de dois versos: Essência musical dos meus versos inúteis, / quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse. O mundo (qualquer mundo) enfastia-o, só porque não foi ele, poeta, quem o fez, pelo que se limita a expandir a todos os pretextos o seu mal-estar, não se sabe porquê.

A Morte, o espaço, a eternidade, de Jorge de Sena
A Morte, o Espaço, a Eternidade é o último poema das Metamorfoses, de Jorge de Sena (antes de Post-Metamorfoses e dos Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, que se seguem no mesmo livro). Foi inspirada pela morte da mãe de José Blanc de Portugal, a quem se deve o luminoso pensamento inicial: De morte natural nunca ninguém morreu, e pelo primeiro satélite artificial da Teria, lançado em 4-11-1957 (Gagárine seria lançado em 4-5-1961). A ideia básica é a de que o ser humano não nasceu para morrer. É natural morrer-se, mas nós somos a anti-natureza (Antiphysis), sempre nos sonhamos imortais, e a própria dor por outrem que morreu é um erro humano a assinalar algo de nós que se perdeu em outrem, é a salvaguarda social da morte individual, como há milhões de anos sabemos. Nascemos para emergir, verbo importante (tal como, na escala animal, a fase dos anfíbios, os que emergiram de um para outro meio). Que prova a morte?
Só prova que se morre de universo pouco. Aceitar a morte é traição ao medo porque somos (medo, outra palavra-chave). Chegaremos às nebulosas mais distantes, porque a morte é deste mundo em que o pecado, a queda a falta originária, o mal / é aceitar, seja o que for rendidos. E aqui há a transição que aproxima o poema de uma ideia que o jacobino, Sampaio (Bruno) trouxe da tradição esotérica. Deus, não pode fazer nada. De nós se acresce ele mesmo, que será / o que espírito formos. Portanto, não nos aguarda, não; e a ressurreição / é a morte desse Deus que nos espera / para espírito ser e a carne do Universo. Para emergir nascemos. E o poema remata por um consciente paradoxo: E, quando o infinito não mais fosse e o encontro houvesse de um limite dele, / a Vida com seus punhos levá-la-á na frente, / para que em Espaço caiba a Eternidade.
Este poema em cuja motivação se cruzam o Sputnik, a primeira proeza extraterrestre desde as viagens que principiaram a unificar intencionalmente a ecúmena, e a morte de uma pessoa amiga, é bem um poema de Jorge de Sena, deca e dodecassilábico branco, escrito currente calamo à medida dos grandes impulsos, embora desde o começo com a negação da natureza: Somos / esse negar da espécie, esse negar / que nos liga ainda ao Sol, à Terra e às águas. As repetições do emergir, e da dor, ou pavor) comunicados pela morte. A morte que não é estritamente animal, ou simplesmente biológica, é da Vida Humana que passa por todo o orgânico e é o gozo e é dor e pele que palpita / ligeiramente fria sob ardentes dedos. É o pouco de universo a que se agarram, / para morrer, os que possuem tudo. Um poema de amor e de progresso, sem limites espaciais. Protesto da Vida, enquanto o medo existir. É ainda possível desvendar contradições, enovelamentos, antinomias. São nossas. Não são de Camões, nem de Soares de Passos, nem da peculiar e complicada neurastenia de Pessoa. São nossas». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Jornal de Letras, 17-8-1994.

Cortesia de Caminho/JDACT