domingo, 23 de fevereiro de 2014

Música Clássica. Marina Zoege von Manteuffel. «Partiste e foi contigo a juventude. Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo, e o terror de não ser minha estátua jacente sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância desmentem, palpitar de traiçoeira fénix! Que só do amor ou só da terra haja saudade. Em longes praias, outras nuvens, outras vozes…»

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«Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?
Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui, sorrindo em branda mágoa,
desfiámos, sem palavras castamente cruas,
não já sequer os íntimos segredos
que o próprio amor, porque ama, não confessa,
nem a vaidade humana dos sentidos, mas
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó amigo?»

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