Ladino
«Miguel Torga tem cinco
livros de contos: Bichos 1940, Montanha 41, Rua 42, Novos
Contos da Montanha 44, e Pedras Lavradas 51. Estes volumes
contêm algumas das peças fortes da sua obra, como Jesus, Maio
Moço, Um Coração Desassossegado, O Alma Grande, O Leproso, Mariana,
Renovo,
Grilo
Branco, O Pequeno Herói, cada um dos quais se propõe e realiza, a seu
modo, um dado valor, o que os torna diferentes, pois cada valor se exprime do
seu modo e se vai mudando à medida que se projecta em imagens. Por isso, depois
de uma longa hesitação em esboçar uma tipologia de textos que evidenciasse a
sua variedade, optei por concentrar os minutos de que disponho na análise de
apenas um, aquele cuja linguagem mais me prendeu pela sua coerência e eficácia.
Trata-se do conto Ladino, de Bichos.
Tal como acontece com o conjunto dos textos de Bichos, e como o próprio
título geral sugere, há uma ideia dominante, que de resto ocorre aqui e além em
toda a obra de Torga, numa linha de
continuidade pós-naturalista. Principiemos por chamar-lhe antropomorfismo. Mas, no caso específico de Ladino, ficava melhor teriomorfismo, até porque o
próprio nome Ladino, que aqui serve de
chamadouro a um pardal, significa, não já aquele que fala latim, ou qualquer
língua românica, mas aquele que é manhoso, esperto, uma propriedade
ocasionalmente humana. E todo o empenho do autor consiste, desde o princípio,
em apreender em termos muito explicitamente humanos a esperteza de um animal,
ou seja, em focar o bicho como ser falante, que se defende de todos os riscos, tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre
Gonçalo, adiando a vida numa facécia final que fica no ouvido, até quando acabar milho em Trás-os-Montes.
Esta confusão entre a vida de um pardal e a vida humana, herança dos
fabulários mas também de Eça, Fialho, Junqueiro, Trindade Coelho, Raul Brandão,
Aquilino Ribeiro, e outros, requer aqui um animal falante e o seu discurso
especial. Digamos que um discurso não-académico, se por académico entendermos a
exposição com sujeito, predicado e circunstâncias bem reconhecidas. Ora, das
sete páginas deste conto, as duas primeiras páginas são um série aparentemente
monologal de troços discursivos que pratica uma sequência de actos de fala de difícil
classificação: exclamações? Excepções? Encarecimentos? Perguntas?
Objecções? Reconhecimentos de valor? Recusa de
aceitação pessoal, etc., etc.? Eis um exemplo inicial da recusa de
deixar o ninho: Mas como havia de lhe dar
o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo de pequenino. Matulão,
homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho? Uma semana inteira em luta
com a família. Erguia o gargalo, olhava, e - é o atiras dali abaixo! A mãe,
coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer felustrias
à volta. E falava da coragem dos irmãos, uns heróis! Bom proveito. Ele é que
não queria saber de cantigas. Etc., etc.
Neste breve exemplo, outras particularidades ressaltam. Em primeiro
lugar, o período só aparentemente é um monólogo, pois facilmente se detecta o
diálogo entre a mãe, a entusiasmar o seu menino a saltar do ninho e ele a
resistir-lhe, e mais adiante também os incentivos mais desalmados do pai. Mas,
além disso, o diálogo trava-se abertamente num dado quadro natural de costumes
invocados, facilmente redutível a troca de esgares, fácil e convincentemente
dados por um discurso indirecto, cuja entoação adequada lhe dá facilmente o
carácter de discurso indirecto livre, de mímica entonacional. Ora, para esta conversão
ser mais natural, as marcas processuais têm de ser mais acusadas, a fala deve
representar bem o carácter cauteloso, desconfiado, medroso do protagonista, a feição
empenhadamente colaborante da mãe, mais adiante o temperamento menos
contemporalizador do pai, e tudo isso exige uma linguagem imediatamente colada
às realidades, capaz de registar as pequenas variações de juízo prático, generalizações
típicas de situações evidentes: Bom
proveito. Ele é que não queria saber de cantigas». In Óscar Lopes, A Busca de
Sentido, Ladino-conto de Miguel Torga, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN
972-21-0986-3.
Cortesia de Caminho/JDACT