Fernão Lopes, a verdade e a história
«(…) A leitura das crónicas, como
de toda a outra documentação, deve ser feita com alguma reserva. No caso das crónicas
lopesianas, náo deveremos deixar de ter em conta que foram escritas entre 1437
e 1443, ou seja, sensivelmente sessenta a setenta anos depois do reinado
fernandino (1367-1383) e da regência de dona Leonor (22 de Outubro
de 1383 a Janeiro de 1384). Esta distância temporal, embora
não seja muito acentuada, difere da do tempo em que o cronista castelhano Pero
López Ayala (1332-1407) viveu. É preciso que saibamos, também, que Ayala
foi não só cronista, como curador do casamento entre o infante Henrique e a infanta
portuguesa dona Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei João I de Castela (marido
da dita dona Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos
e participante na batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Ou seja, ao contrário
de Lopes, foi testemunha ocular de acontecimentos passados na época a que nos reportamos,
acontecimentos esses muitas vezes relatados nas suas crónicas. Por fim, é importante
ter em conta que a obra de Fernão Lopes resultou de uma encomenda feita pela dinastia
de Avis, nos primeiros anos da sua vigência, quando urgia afirmar o reinado dos
novos governantes.
A juntar a estes factores, existe
a informação de que a maioria dos documentos que fizeram parte dos livos da chancelaria
de Fernando I (que contém também os diplomas de dona Leonor Teles) não chegou até
nós. Vejamos porquê. A Torre do Tombo, criada por Fernando I, em 1378, e instalada no castelo de São Jorge,
passou a ser o arquivo onde se guardavam os livros das chancelarias régias. Com
o passar dos anos, a desorganização foi-se instalando: o grande número de livros de registos, o desconhecimento da língua latina
e do português arcaico, a ilegibilidade das grafias antigas, o estado de
conservação, a proficuidade de traslados e cópias de um mesmo acto, a caducidade
das cartas tornavam inútil uma parte dos diplomas guardados e dos registos feitos
e, ao mesmo tempo, dificultavam o exame e a consulta dos mesmos.
Urgia reformular a Torre. Em
1458, por ordem do rei Afonso V, o cronista
e guarda-mor da Torre do Tombo, Gomes Eanes Zurara, iniciou um processo de depuração
e remodelação que marcou para sempre a História e que consistiu no seguinte: escolher
nos livros de registo antigos os actos dignos de memória e copiá-los para novos
livros de registo. Assim, os dez livros de Pedro I foram reduzidos a um, os dezassete
livros de Fernando I resumiram-se a dois (Livros 1 e 2, da sua chancelaria), os
quarenta e oito de João I passaram a quatro
e os cinco de Duarte I a um. Os antigos livros de registo passaram à categoria
de obsoletos e foram esquecidos, até acabarem por desaparecer no reinado de João
III; se no inventário de 1526, feito
por Tomé Lopes, guarda-mor da Torre, ainda constavam cerca de setenta desses livros
antigos, entre os quais os dezassete de Fernando I, no inventário de 1529, elaborado pelo guarda-mor seguinte,
Fernão Pina, a respeito do conteúdo deixado pelo seu antecessor, os mesmos já não
foram citados. Assim sendo, só depois de João I e, sobretudo, a partir de Duarte
I, voltaram a existir registos primitivos (e não registos reformados), com actos
mais numerosos e mais bem conservados do que os livros de chancelaria dos
reinados anteriores.
A chancelaria do rei Fernando I resume-se
actualmente a quatro livros. O primeiro e o segundo são cópias do
século XV e englobam todo o reinado. O terceiro é um livro original respeitante
aos anos de 1381-1383. O quarto tem fólios originais dispersos que
compunham alguns dos livros antigos da chancelaria fernandina, contendo actos
produzidos nos anos de 1368-1378. Ao fazer a cópia do registo,
o escriba riscava-o com um X ou um traço oblíquo, escrevendo por baixo
traslado, passando depois ao registo seguinte,
sobre o qual aplicava o mesmo processo. Esta triagem foi feita ao longo do
tempo por diferentes agentes. No início, pelos próprios serviços de chancelaria
que trabalhavam para Fernando I, depois pelo próprio Fernão Lopes, que foi guarda-mor
da Torre e que teve ainda acesso aos dezassete livros iniciais da chancelaria fernandina,
e, por fim, pelas depurações praticadas nos séculos XV e XVI. A partir do século
XX, alguns historiadores chamaram a atenção para a suposta parcialidade do
cronista. Horácio Ferreira Alves, por exemplo, alertou para o facto de as crónicas
antigas, em que Fernão Lopes se baseou para escrever a história dos reis antigos,
terem desaparecido depois dele. Na sua opinião, este desaparecimento foi intencional,
já que a sua existência podia contrariar a verdade
contada por Fernão Lopes. Enaltecer o reinado de João I, cujo filho sustentava
o cronista, era imperioso, mas exigia que se deformassem e falsificassem os reinados
anteriores, particularmente os de Pedro I e de Fernando I, de modo a que o governo
de João I pudesse sobressair e ser aceite como uma tábua de salvação que
reerguia Portugal da crise económica e social em que mergulhara no final do século
XIV». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha Inesperada, Leonor Teles, Temas e
Debates, Círculo de Leitores, 2013, ISBN 978-989-644-230-9.