A
judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino
«(…)
É, em seguida, uma cristã- nova, obrigada a esconder a sua dupla identidade, mas
sem nunca dela se desembaraçar completamente, perseguida durante grande parte
da sua vida, condenada à errância para se manter fiel a si mesma. Uma mulher que
incarna nela própria o destino dos cristãos-novos judaizantes, eternamente dilacerados entre dois mundos, duas culturas,
duas pertenças religiosas, duas identidades. Grácia Nasi é, por outro lado, herdeira
de uma fortuna colossal por morte do marido. Fortuna cobiçada por reis, príncipes
e papas que não se coíbem de exercer sobre ela as mais violentas pressões para se
apoderarem da sua riqueza. Fiel às suas convicções e à sua fé inquebrantável, Grácia
encontrou sempre alternativas de fuga ou de suborno que lhe permitiram resistir
a elas. A sua vida percorre o mapa europeu da Península Ibérica até ao Império
Otomano onde finalmente adoptou publicamente, e pela primeira vez, o
judaísmo. Viúva aos vinte e cinco anos e à frente dum verdadeiro império, ela
assumirá o seu papel de mulher de negócios
simbolizando ao mais alto grau o espírito pioneiro, empreendedor e preponderante
assumido na época pelos sefarditas judeus/cristãos-novos.
Finalmente, Grácia é uma mulher profundamente
crente, habitada por uma paixão mística pelo judaísmo e que coloca o seu fervor
religioso e uma parte significativa da sua fortuna ao serviço dos seus irmãos de
destino, os marranos, originando uma verdadeira devoção. Samuel Usque chama-lhe
o coração do seu povo. Cecil Roth escreve:
em toda a história judaica, nenhuma outra
mulher foi objecto de uma tal devoção; nenhuma outra mulher o mereceu tanto.
Para rabinos e eruditos a quem ela ajudou e patrocinou, Grácia tem a piedade de Miriam, a sabedoria de Débora, a
dedicação de Esther e a coragem de Judite. O meu encontro com Grácia Nasi não
foi uma revelação fulgurante. O conhecimento da sua personagem foi progressivo,
em primeiro lugar através de obras romanceadas, depois da leitura das biografias
e estudos históricos. Confesso que o meu interesse por Grácia deve muito ao símbolo
que representa. Mais do que uma mulher de carne e osso, uma carne ausente, como refere Catherine Clément, Grácia tornou-se
o símbolo do sofrimento dos marranos, do misticismo messiânico que os habitava,
da sua fé inquebrantável e ao mesmo tempo do pioneirismo económico que fez
deles os precursores do capitalismo global.
Apesar
do sentido pejorativo da palavra marranorr,
termo pelo qual eram designados, em Espanha e depois em Portugal, os judeus convertidos
ao cristianismo que guardavam secretamente as práticas judaicas, mantive este termo
ao longo do texto, sem aspas, em vez do termo anuss (forçado) utilizado normalmente pelos judeus da Península
para designar os seus irmãos convertidos à força. Com efeito, a expressão marranos, não só consta dos documentos da
época, como é hoje quase universalmente utilizada pelos historiadores para designar
os judeus secretos ou cripto-judeus. O termo é também, para muitos dos seus descendentes,
sinónimo de resistência à assimilação forçada ao cristianismo. Assim, de termo
pejorativo que era, a expressão marrano
passou a reflectir uma situação histórica e uma conduta colectiva de um grupo de
cristãos-novos.
Outros
nomes que se podem prestar a equívocos são os de Constantinopla e Istambul,
Turquia e Império Otomano. Com a queda ou conquista (conforme o ponto de vista dos
derrotados ou dos vencedores) do império bizantino e de Constantinopla, em 1453, pelos Turcos, esta passou a chamar-se
Istambul, muito embora o nome só tenha sido oficializado depois do fim do Império
Otomano. Apesar de o Ocidente ter mantido o nome de Constantinopla durante muito
tempo, adoptei em geral o nome de Istambul que é o nome da cidade desde o
século XV. Da mesma forma a república turca, a Turquia, só é criada oficialmente
em 1923, após a queda do Império Otomano.
Mas tendo em conta que foram os Turcos os seus fundadores, é frequente chamar-se
indiferenciadamente Império Otomano ou Império Turco. Os nomes também utilizados
de Sublime Porta ou simplesmente,
Porta, referem-se ao antigo
cerimonial de acolhimento, pelo sultão, dos embaixadores estrangeiros à entrada
do palácio». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que
desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN
978-989-626-244-0.
Cortesia
de ELivros/JDACT